David Santos lança o quinto álbum como Noiserv, que celebra também os 20 anos de carreira. Em entrevista ao Altamont, o artista fala sobre este novo trabalho, dos concertos que aí vêm e de como se rodeou de músicos amigos para as colaborações.
Altamont: Estamos a conversar a propósito do teu álbum novo, um disco conceptual e muito interessante. O que significa para ti por um disco cá fora, qual é a sensação de mostrar ao mundo o trabalho de muitos meses?
Noiserv: Há muitos sentimentos ao mesmo tempo. Por um lado, é um sentimento muito bom esta ideia da pessoa perceber que terminou mais uma coisa que se propôs a fazer. E, como estavas a dizer, fazer um disco não é só juntar uma série de rascunhos: é encontrar um conceito que englobe as músicas todas, os vídeos todos, no físico e no digital, no conceito de todas as coisas. Portanto, há sempre esse sentimento de felicidade de ter conseguido reunir essas peças todas. Depois há, juntamente com isso, um sentimento de receio… Primeiro, ainda por cima da sociedade de hoje, em que parece que não há tempo para tudo, que as pessoas não tenham o tempo suficiente para conseguir ouvir o disco todo de uma ponta a outra. E que não tenham o tempo suficiente para tornar delas estas músicas. E aí começa a segunda parte de uma ansiedade, de uma preocupação inerente a qualquer lançamento hoje em dia, que é o lançamento poder ser ligeiramente inconsequente, que as pessoas nem sequer saibam que o disco saiu, quer as que já gostavam da tua música quer as novas que pudessem vir, mas que não estão com tempo para o ouvir. Ainda por cima sendo um disco que sai 20 anos depois do primeiro concerto. E, portanto, 20 anos a fazer discos, a fazer coisas, é sempre um sentimento de… Olha, que engraçado e que bom.
É o disco que marca os 20 anos de carreira. Como é que olhas para este percurso agora? Achas que este novo disco é também o culminar dessa experiência que tu tiveste e do que foste aprendendo ao longo do tempo enquanto artista, enquanto compositor enquanto multi-instrumentista e tudo o que tu és como artista?
Eu acho que todos os discos… E não é aquela conversa de chacha de dizer que o último disco é que é o melhor. Mas no meu caso, que não tive estudos verdadeiros de música, fui sempre aprendendo com os concertos, fui sempre aprendendo com os discos, fui sempre aprendendo com todas [as músicas] que fui fazendo. Claro que é inevitável não pensar nesta ideia de vinte anos. E o disco tem uma particularidade: todas as músicas têm, além do nome da música, um código de quatro números. Tirando as últimas três músicas, esses códigos são os anos em que existiram lançamentos de Noiserv.
O meu desafio inicial quando fiz as músicas foi quase revisitar o que era o meu processo criativo naquela altura. Portanto, se tu reparares, a música que começa por 2005, que é a primeira do disco, embora tenha aquele coro de vozes espetaculares daqueles amigos meus todos [Afonso Cabral (You Can’t Win, Charlie Brown), Ed Rocha e Catarina Salinas (Best Youth), Rui Gaspar e Telmo Soares (First Breath After Coma), Bia Maria, Selma Uamusse e André Tentugal (We Trust)], não deixa de ser uma música que tem como base principal a voz e a guitarra, que foi aquilo que aconteceu em 2005, quando eu lancei o primeiro EP. Por exemplo, a música com a Milhanas, que tem antes o número 2016, representa o disco de 2016 que é em português e só com voz e piano. E por aí fora…
Depois há aquelas três músicas que fogem um bocadinho disso. A de 2025 acaba por ligar-se mais à atualidade, até pela temática da letra, e depois há estas duas brincadeiras com o eu de 2027, do que poderia ser um possível futuro… esta ideia mais eletrónica. E a última música, de 2082, que seria eventualmente a música que eu escreveria aos cem anos… temos sempre aquela ideia de que a vida termina aos 100 anos e, portanto, esta música de piano e voz é um pouco aquilo que eu tenho vindo a sentir enquanto pessoa. A pessoa envelhece e torna-se mais crescida… e aquela explosão é como se fosse o final. É uma coisa épica e emotiva, mas é sempre feliz.
Portanto o disco tem esta ligação e vai crescendo, vai crescendo bastante. Imagina, se aquela música fosse o que estivesse no ar quando eu morresse, aquela explosão final, seria um sentimento bom.

E o título do disco? 7305, O que é que significa?
É o número de dias de vinte anos desde o primeiro concerto de Noiserv. Vou-te mostrar (levanta-se e vai buscar um CD). A capa é um calendário perpétuo de 2005 a 2025. Ou seja, se tu rodares este mecanismo no CD, muda na capa e diz-te todos os dias da semana desde 2005 até 2025. É como se na capa e neste conceito estivessem vivos todos estes 3705 dias.
Nota-se que não deixas nada ao acaso, o que é também uma característica tua enquanto músico. Desde a música às pessoas que convidas para tocar contigo, também à idealização da capa do álbum, de que falámos agora, és tu que estás ao comando de tudo?
Sim. Ou seja, claro que eu não tenho aptidão para fazer tudo da melhor maneira. Portanto eu gosto de me reunir de pessoas que são capazes de o fazer. Por acaso, a capa deste disco fiz sozinho. Tive umas discussões com o André Santos, com quem fiz o grafismo do livro que o que eu lancei há quatro anos [“Três-Vezes-Dez-Elevado-a-Oito-Metros-por-Segundo”] e chegámos a esta ideia do calendário.
Depois, fui investigar como é que o calendário se construía e como é que podia fazer uma representação destes vinte anos. Sinto que, hoje em dia, o objeto físico é cada vez mais insignificante para as pessoas. E, portanto, se as pessoas – que eu espero que sejam muitas -, quiserem ficar com o objeto que representa a minha música, então que esse objeto seja complexo, no bom sentido. Este disco não deixa de ser o disco dos vinte anos e demora muito tempo a ter as ideias todas.
Quanto tempo é que estiveste a trabalhar neste álbum?
Musicalmente comecei a meio do ano passado. Mas desde o último disco passaram cinco anos e nesses cinco anos vou tendo ideias soltas, escrevendo rascunhos, pequenas notas. Não estou criativamente parado. Neste disco tive o dilema de achar que cantar em português e em inglês podia não funcionar, mas depois, para o conceito que eu tinha, esta ligação aos vários álbuns de Noiserv, fazia sentido. Portanto, tudo isso precisa de muito tempo para pensar, repensar e decidir.
Em relação às tuas convidadas, porque acabam por ser só mulheres em destaque, apesar dos “amigos” que convidaste também para a primeira faixa, como é que escolheste estas artistas e como é surge a colaboração depois em estúdio com estas convidadas?
Quando eu, ao longo destes cinco anos, fui pensando na ideia do disco novo pensei que seria giro ter uma música para abrir em que cantassem algumas das pessoas que são não só músicos que eu gosto, mas que são meus amigos também. Ou seja, por muito que Noiserv seja um projeto solitário eu não estou sozinho neste lugar musical. E isso foi o gatilho para que este disco pudesse ter convidados, de ouvir vozes das quais eu gosto muito. E convidei as pessoas para participar.
Na música com a Surma, percebi rapidamente que era giro aquela música ser um dueto neste universo meio islandês e ela veio ao meu estúdio e a música ficou assim.
A Garota Não, conheci-a antes de toda a explosão que ela teve. Ela, ela trabalhava na Câmara Municipal de Setúbal e eu fui uma vez tocar num concurso de bandas, eu era a banda convidada e ela era a apresentadora. E na altura disse-me que também tinha umas músicas e que um dia ia lançar um disco. E depois quando ela surge com o primeiro disco percebi que era a mesma pessoa e fiquei, como acho que praticamente todos, apaixonado pela intensidade com que ela diz as palavras. E quando comecei a pensar no disco, e nesta música em particular, que era um bocado mais política, pensei que podia ser interessante ela fazer quase como uma pergunta-resposta àquilo que eu estou a dizer. Ao contrário da Surma e da Milhanas ela veio aqui um dia comigo, tivemos a discutir música e depois ela gravou a voz em casa e enviou.
Já a Milhanas foi um bocadinho diferente, porque conheço-a há menos tempo. Quando estava ao piano a tocar aquelas primeiras notas e a começar logo no refrão, senti que isto era giro era com a voz dela aqui. E pronto, mandei uma mensagem a perguntar e felizmente as pessoas a quem eu mandei as mensagens a perguntar disseram que sim.
Já explicaste um pouco como é que a ideia surgiu, mas os teus discos são sempre muito conceptuais. Se tivesse três palavras-chave para descrever este disco, como é que o descreverias?
Acho que é um disco bastante denso em ideias e em conceitos. Espero que tenha melancolia, como os discos que eu gosto de ouvir têm sempre. E, não gostando muito de celebrações, este é um disco celebrativo de 20 anos. Se não fizer outro, fiz um nos 20 anos.
Olhando para onde tu eras há 20 anos como artista, em termos de sonoridade, também desta forma cinematográfica, como tu trabalhas a música, da tua própria abordagem ao público quando estás em concerto, o que é que achas que mudaste radicalmente e o que é que achas que é uma característica tua e que não mudou?
Não sei. Eu acho que eu não me conhecia muito bem musicalmente quando comecei.
Eu sabia o que é que eu gostava de ouvir e sabia as músicas que eu gostava de ouvir quando ia fazer um passeio a pé, quando ia andar de bicicleta, quando ia andar de patins. Mas eu não sabia aquilo que eu seria eventualmente capaz de fazer. Portanto, o primeiro EP é uma coisa muito despida de perfeccionismo, porque eu não sabia, na verdade, eu sabia muito poucas coisas de captação de guitarras, de microfones. Acho que tecnicamente fui evoluindo bastante.
Depois, nos primeiros concertos de todos, embora eu ainda fique bastante nervoso em todos os concertos, mas atualmente sinto que quase sempre consigo controlar esse nervoso e no início não conseguia. A comunicação com as pessoas era muito mais complicada porque eu não conseguia parar para respirar enquanto o concerto estava a acontecer. Acho que por fazer muitos concertos, em muitas salas diferentes, de perceber que as músicas às vezes até funcionam melhor se elas tiverem uma explicação da pessoa que as fez, fui criando depois o facto, se calhar, de tocar sozinho, que é muito giro tocar tudo sozinho, mas se não houver uma ligação entre mim e aquelas pessoas, eu ainda estou mais sozinho. E às vezes aquela primeira fila, aquela segunda fila, se eu for olhando para os olhos dessas pessoas e sentir que elas estão realmente a sentir aquilo que eu estou a fazer, essa ligação também me torna menos solitário naquele momento.
Ou seja, eu não sei se sou diferente do que era no princípio. Eu acho que me conheço melhor, mas se calhar o que eu sou já lá estava. Fui sendo capaz de enfrentar palcos de dimensão maior, mas a pessoa é a mesma. Às vezes, quando o concerto corre bem e aquilo estava a muita gente, até fico… Como é que é possível ter conseguido fazer aquilo?
Eu só me conheci melhor e fui aproveitando esse conhecimento que fui tendo de mim próprio, não só a nível emocional quando estou a tocar, mas também tecnicamente. Aí claramente há uma diferença gigante. Eu tive quatro anos de aulas de piano entre 2012 e 2016 e isso deu-me algumas valências que eu não tinha, mas o primeiro disco é de 2005, anterior a isso. Eu sabia tocar guitarra desde adolescente, mas era só isso.
Também já tens duas datas de concertos anunciadas, depois de novo disco, 26 de novembro, Lisboa, e 6 de dezembro, Porto. O que é que podemos esperar destes espetáculos, sem estragar a surpresa de quem vai aos concertos?
Eu acho que a surpresa é eu conseguir tocar as músicas! (risos) Mas a ideia é não tocar só o disco novo, eu gosto sempre de fazer uma mistura entre o novo e os trabalhos antigos, ainda mais nesta ideia conceptual dos 20 anos, mas eu acho muito gira esta ideia de de repente tocar uma música em 2010 e a seguir toca uma que fez 15 anos depois. E como é que isso funciona no alinhamento do concerto? Portanto, será um concerto, ou serão concertos com um foco maior neste disco novo, mas eu acho que as surpresas são essas.
E vamos ter convidados nestes concertos? Podemos esperar que as tuas três companheiras de canções, ou pelo menos alguma delas?
Felizmente elas têm muitas coisas para fazer! Neste momento, confirmado, só a Surma em Lisboa.

Tens alguma música preferida neste disco? Que música é que tu gostavas que o público descobrisse no disco, uma música que tu achas que é excelente, mas que talvez passe um bocadinho debaixo do radar?
É assim, eu acho que não só pela temática, mas também pelo meu gosto pessoal, eu acho que a última música [“20. 82. One hundred is much more than ten times ten”] tem uma força muito grande. Eu tenho lançado um vídeo todos os meses. O vídeo para a última música será em dezembro e esta é a música que fecha o disco e é também um vídeo que fecha toda a narrativa e é um desfecho que conceptualmente até é muito engraçado.
Essa música tem também esse foco nessa questão da contemplação do que é todo o disco. Eu sou sempre meio perfecionista, ou obcecado, com a música que fecha o disco. Muitas das músicas que foram fechando os vários discos foram as últimas músicas depois fecham no concerto. E essa última eu acho que fecha também. Também tem um convidado, que é o baterista João Correia, Dos Tape Junk, que trabalha com Jorge Palma, com o Benjamim, e que, na minha opinião, o melhor baterista português. E, portanto, a música tem uma explosão final absurda da parte dele. Acho que, se tivesse de escolher uma, escolheria essa.
Também gosto muito da música com a Milhanas, gosto muito de todas as músicas dos convidados, cada uma à sua maneira, são fortes. E a primeira, a do coro, tem o peso especial daquelas pessoas todas ali a cantar.
Que conselho é que darias a um artista que estivesse a começar agora, especialmente no circuito alternativo? Este é é um mercado pequeno, difícil de entrar.
Este já foi um mercado muito pequeno, depois tornou-se um mercado ligeiramente maior e agora parece que está a ficar outra vez afunilado… O alternativo não está muito na moda, como já esteve em 2010, em 2015, quando só se ouvia alternativo. De repente desapareceu para dar espaço a outros estilos. E havia uma altura em que a oferta não era tanta e se a pessoa se dedicasse de uma maneira muito intensa e nunca desistisse, as coisas acabariam por acontecer. Hoje em dia já não tenho a certeza disso. Quer seja um nome consagrado quer seja um nome completamente novo. Há aqui uma variável sorte, há uma variável de oportunidade. Se calhar o momento em que tu lanças o álbum pode fazer toda a diferença entre esse álbum ser ouvido ou não.
A internet veio oferecer muita informação, mas também veio tirar às pessoas a procura de informação. Antigamente as pessoas procuravam saber o que é que há de novo. Hoje em dia como é tudo de acesso mais fácil a pessoa já não procura… Só chega o que os algoritmos ditam e o que está nas redes sociais. E isso para uma pessoa nova eu acho que é mais assustador. Se juntares a isso o facto de que os programas de televisão e toda a sociedade demonstrarem que o que faz sentido é que tu fazes uma música em casa, na casa de banho e no dia a seguir és o maior do mundo… isto não é verdade. Mas a televisão e as narrativas a nível europeu ou mundial são um bocado estas. Se a pessoa for ver os grandes cantores da pop mais comercial, eles lançaram as músicas no Youtube e de repente estão aí e são estrelas. Mas isso é um caso em não sei quantos milhões.
Portanto, pode ser muito difícil uma pessoa conseguir lá chegar. Mas depois há muito trabalho a fazer. Mesmo que tu tenhas a sorte de estar naquele momento certo, para a tua música do Youtube ser descoberta, há todo um caminho a seguir a isso. E eu até acho que é bom a pessoa ser descoberta depois de algum trabalho já estar feito. Senão perde-se um bocado a mão na coisa que está a fazer.