Há pouco mais de um ano, uma proposta para recriar ao vivo Por Este Rio Acima ganhou a candidatura ao Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Coimbra (CMC). Buga Lopes, músico e compositor, trabalhou então com uma orquestra composta pela Tuna Académica da Universidade de Coimbra (TAUC), o Coro Misto da Universidade de Coimbra (CMUC) e o grupo Há Música na Aldeia para apresentar o disco seminal de Fausto. Dessa colaboração nasceu então a exibição do primeiro capítulo da trilogia Lusitana Diáspora, inserida na comemoração dos 32 anos da Rádio Universidade de Coimbra (RUC). Entretanto, deste trabalho surge o CAIS – Coletivo de Artistas Independentes. Tendo o CAIS como plataforma de base, com o apoio da CMC, este grupo de entidades apresenta a reposição do espetáculo que, há um ano, teve lugar no Conservatório de Música de Coimbra. O Altamont foi falar com Buga Lopes, Constança Ochoa e Daniel Chichorro para perceber todo o trabalho por trás deste novo e melhorado “Por Este Rio Acima”, que irá ser apresentado dia 24 de abril, pelas 21h30, no Terreiro da Erva, em Coimbra.
No ano passado venceram o concurso ao Orçamento Participativo (OP) e apresentaram o “Por Este Rio Acima” pela primeira vez. Com que diferenças é que o público vai poder contar nesta reposição?
Buga Lopes: Várias… São mais pessoas em cima de palco. Da outra vez foram 32, agora são 58. Esta é uma delas. Outra é que, no ano passado, por uma questão de tempo, tivemos que tomar uma opção e não incluir todas as músicas do disco. Desta vez vamos incluir todas as músicas do disco.
Daniel Chichorro: Os arranjos de uma forma geral foram todos retocados…
BL: Sim, também adicionamos mais pormenores, há mais participações da orquestra nos arranjos. Alguns dos solistas são diferentes… Depois há toda a estrutura que se montou no último ano com o CAIS, que nos permite estar a chegar a este ponto. E claro, o OP aí tem uma grande influência: permite-nos estar a chegar a este ponto e, em vez de estarmos a tocar para uma sala de 200 pessoas – o que, por si só, já é muito bom – vamos fazer um concerto ao ar livre, gratuito, com uma produção nossa, com palco montado, com técnicos de som, luz…
Constança Ochoa: E não faz parte da celebração do aniversário de uma entidade, é mesmo uma causa própria.
BL: Além disso, no espetáculo anterior, os arranjos foram todos escritos por mim e, neste espetáculo, já não é isso que está a acontecer. Para além dos arranjos do espetáculo anterior terem sido melhorados e enaltecidos, a Constança também escreveu um arranjo de coro para este espetáculo, o Daniel fez algumas partes de orquestra de cordas e fez um arranjo para o “Romance de Diogo Soares”. Portanto, mesmo na criação do espetáculo, já houve um espírito mais colaborativo e uma interação muito maior. Houve grandes sessões de nós a trabalhar, a escrever música no computador e tudo mais!
Como é que foi o processo de processo para montar este espetáculo desde o ano passado?
BL: Nós fizemos várias coisas diferentes. Em primeira instância, estávamos e estamos a trabalhar em colaboração com o CMUC e a TAUC, que são duas organizações que nos têm ajudado muito. Portanto, para expandir a orquestra, recrutamos mais pessoas dessas organizações. Para além disso, em termos de pessoas, como nós acabámos por fundar o coletivo pouco depois do concerto da RUC, houve imensa gente – músicos e outras pessoas associadas a nós – que foi começando a saber que o coletivo existia e a começar a demonstrar interesse, a querer participar no espetáculo, a querer ajudar-nos… Isso, pelo menos a mim, é uma coisa que me motiva imenso.
Como nasce a colaboração com a TAUC, o CMUC e o grupo Há Música na Aldeia?
BL: Essa colaboração nasce porque o espetáculo, inicialmente, foi-me proposto escrever e dirigir pela RUC para o aniversário da rádio. Sendo um evento da RUC houve uma colaboração de organismos associativos. Quando eles me convidaram para fazer o espetáculo, perguntaram-me quem é que nós achávamos que poderíamos por em cima do palco. Foram colocadas várias hipóteses; eu, como conheço pessoas na TAUC e sou antigo do CMUC, sugeri automaticamente estas duas organizações. Inevitavelmente criou-se uma amizade e temos andado a trabalhar em conjunto, neste projeto e não só – também já aconteceu durante o último ano eu escrever uns arranjos para o CMUC, arranjei uma ou outra data aí à malta, fiz um workshop na TAUC…
CO: Sim, estavas a colaborar connosco, eu sou antiga do CMUC, ele [Daniel] é antigo da TAUC…
DC: Basicamente há uma relação muito próxima entre os membros das associações. É lógico que, como agentes culturais dentro da cidade, a TAUC e o CMUC ocupam um espaço de destaque na aglutinação de malta que quer fazer música na cidade. Não há assim muitas associações do género e fazia todo o sentido, para um projeto como o CAIS, trabalhar em conjunto, de forma paralela.
BL: Depois temos o Há Música na Aldeia, que é um grupo de música tradicional portuguesa de que eu e o Daniel também fazemos parte. Temos um repertório original e de recolha muito variado, com arranjos. Algumas pessoas que fazem parte, como o Daniel, o Grácio, o Guilherme Pinto e o Paulo fazem parte dessa organização que já tem um entrosamento com a música tradicional que é um pouco aquilo que o disco exigia, a fusão da orquestra com a música tradicional… Portanto pareceu-me bem ir chamar algumas pessoas desse grupo. Principalmente, neste caso, o Ricardo Grácio, que toca oito ou dez instrumentos e tudo o que são cordofones tradicionais… Acaba por ser uma pessoa muito valiosa porque a instrumentação que ele traz para o concerto dá uma identidade muito forte àquilo que nós estamos a apresentar.
Além destes grupos, contam com a participação de artistas amigos do CAIS, como o Zé Keating e os Pinhata. Que contributo é que eles trouxeram para o projeto?
BL: No caso particular do Zé, nós chamamo-lo porque ele tem um identidade muito própria a cantar e podia trazer aqui uma coisa interessante para cima da mesa, para algumas músicas do Fausto, que têm aquele tom de popular, palavras corridas ditas muito rápidas, que não é uma coisa muito fácil de fazer…
CO: Mas também pelo próprio interesse dele, que mostrou interesse no projeto e no repertório.
BL: Sim, e essa foi a parte gira! Quer por pessoas individualmente, quer por bandas e conjuntos que têm a sua própria atividade, nós abordamos e temos vindo a ser abordados por cada vez mais grupos para trabalharmos em colaboração. Um dos esforços interessantes que temos feito é, além de estarmos a preparar este espetáculo, termos andado a entrar em colaboração com outras entidades e casas de espetáculo, até com a Câmara de Coimbra, ou a de Miranda do Corvo, e termos criado oportunidades para esses grupos e esses artistas irem tocar individualmente também, o que me parece fantástico tendo em conta a natureza do CAIS.
CO: Vale a pena frisar que nós convidamos pessoas específicas para fazer parte do projeto porque queríamos essas pessoas a fazer parte do projeto. Pessoas que estavam interessadas e queriam fazer música connosco. Tal como foi com o Zé, podia ser outra pessoa que nós disséssemos “queres vir? Estás interessado?”
DC: Sim, no fundo, para preencher as lacunas de malta que não tínhamos preenchido com o CMUC e a TAUC exclusivamente.
CO: e com o Zé foi porque eu sabia que ele ia estar interessado em participar.
Este ano celebram-se 37 anos desde o lançamento do Por Este Rio Acima. Que importância é que este disco teve para vocês?
BL: Da minha experiência pessoal, foi um disco que eu conheci desde pequeno. Foi uma das obras-primas da música popular tradicional portuguesa e para mim foi uma coisa que me influenciou muito no meu crescimento como músico, porque o disco tem uma fusão de estilos, partes orquestrais, novos instrumentos inseridos na música tradicional, sintetizadores e coisas. Nesse ponto de vista, foi um groundbreaking work.
DC: Eu conhecia algumas coisas de Fausto antes de entrar neste projeto e gostava. Confesso que não conhecia muito… Já tinha ouvido este disco do início ao fim ao longo da minha vida, mas não era uma obra que a mim me dissesse muito. Eu venho de um contexto de música clássica e, ao longo da minha formação, eu tinha pouco, zero contacto com música tradicional. Na altura em que entrei em contacto com esta ideia, eu era, na TAUC, um dos que estava mais ligado ao início deste projeto do concerto para a RUC. Fiquei entusiasmadíssimo porque era uma cena completamente fora da minha zona de conforto e, ao ouvir o álbum vezes e vezes seguidas, fiquei absolutamente impressionado com o trabalho do Fausto. Ele consegue fazer música altamente complexa soar simples e abordável e isso é mesmo impressionante. É uma característica deste álbum mesmo fascinante.
CO: Eu só conheci o disco há uns cinco anos. No ano passado, quando o Buga me sugeriu isto, estava numa fase em que andava a ouvir o álbum vezes sem conta, sabia quase tudo de cor (risos). Por isso fiquei muito entusiasmada, mas também não esperava que a complexidade fosse tanta, repito aquilo que o Daniel disse: é que parece tudo tão simples quando ouves a música popular no fundo e, no entanto, tem dentro de si uma complexidade instrumental, musical muito maior do que parece, harmónica…
BL: Rítmica…
CO: Sim, e lírica. Eu acho muito engraçado, quando fui reler algumas parte do livro do Fernão Mendes Pinto, que o Fausto tenha retirado pedaços completos de frases que ele lá tem escritas. Acho isso brutal. A forma como ele consegue escrever música por gostar só de certas frases num livro e copiá-las na íntegra, como escreve uma história numa música inteira com pedaços de um livro com imensas páginas… Não sei bem como expressar isto, mas acho que é mesmo muito importante nesse ponto de vista. Não há muita gente que conheça o livro e se tiver interesse em conhecer pode ouvir o disco como introdução. É uma boa representação daquilo que pode ser um álbum de música portuguesa.
Porquê recriar o Por Este Rio Acima e não outro disco?
BL: Inicialmente porque foi ideia da RUC fazer um espetáculo baseado neste disco, transpô-lo para orquestra etc. E depois porque é uma das obras-primas da música popular portuguesa e acho que, do meu ponto de vista, no trabalho do Fausto, não haveria outro disco com um impacto tão forte e com uma presença tão grande na nossa cultura.
CO: Nem os outros dois da trilogia são tão bons como este… tão representativos vá, daquilo que podia ser, tão abrangentes…
BL: Acabam por ser diferentes. Este, por exemplo, eu sinto que acaba por ter uma proximidade maior com a música tradicional, enquanto que os outros, embora também tenham música tradicional, têm uma abordagem diferente, mais moderna, estão mais baseados em sintetizadores, em baterias modernas… Têm uma abordagem diferente.
Por último, depois da apresentação do “Por Este Rio Acima”, o que está no horizonte do CAIS?
BL: nós gostaríamos de voltar a repor este espetáculo, fora de Coimbra também, se fosse possível. Não está a ser fácil, porque é um espetáculo muito complexo, tem muita gente e acaba por ser dispendioso, o que não quer dizer que não voltemos a conseguir fazê-lo. Mas também, se não voltarmos, eu já me sinto feliz com aquilo que estamos a fazer agora. Para além disso, temos estado a trabalhar noutras frentes. Como eu estava a dizer há pouco, há grupos mais pequenos com trabalhos de repertório ou de originais que nós estamos a tentar ajudar a divulgar e a criarem conteúdo para eles próprios, a lançarem-se e a arranjar concertos. Uma das coisas que temos planeada para breve é para o dia 11 de maio, na Casa das Artes da Bissaya Barreto, em que vamos organizar um dia muito maluco, com 16 bandas a fazerem pequenos showcases de 25 minutos, a tocarem os materiais que eles bem entenderem. Isto no sentido de captar vídeo e lhes oferecer esse conteúdo para eles próprios se promoverem. Outra coisa que temos planeada para acontecer é um espetáculo que se chama “Uma breve história da música” que conta com a participação de vários grupos associados ao CAIS que vai estar na Feira Cultural de Coimbra. E, assim de momento, estes são os nossos esforços. Eu também faço tenções de começar a trabalhar um espetáculo novo para 2020, mas antes de pensar nisso tenho de acabar o “Por Este Rio Acima” (risos).