Viajar! Perder países!
Fernando Pessoa
Muito se viajou no ano de 1994. Esse estado de alma transitou para os anos seguintes, e fez-se local obrigatório de passagem de quase toda a intelligentsia musical, assim como do grande público português consumidor de música lusa. Tornou-se um marco, esse disco de estreia do artista portuense. Refiro-me, como já terão percebido, ao álbum Viagens, de Pedro Abrunhosa e os Bandemónio.
No entanto, como em tudo na vida, há sempre quem não esteja de acordo, há sempre uma pequena aldeia que resiste, um Ideafix disposto a rosnar (eu próprio, pois claro) a desfavor do bardo de serviço nessas dez composições que fazem de Viagens um tormento que perdura há quase 30 anos. Uderzo e Goscinny tinham razão. Pedro (Assurancetourix) Abrunhosa nunca deveria fazer uso da sua voz, nem fazer dela profissão. Mas fez, é um facto, e com notável sucesso.
Como remar contra essa maré viajante? É com dificuldade que o faço, desde que o disco saiu a público. Muitos o idolatram, mas eu não, e vou acrescentando a essa minha direção contrária, tendo em conta o gosto comum, mais um ou outro aspeto que também nunca aceitei como minimamente interessante, sequer. A imagem de marca dos seus óculos escuros (não admira que caia de palcos) e a pompa olímpica com que fala da sua obra discográfica, levam-me a não ver em Abrunhosa um artista do meu agrado. No entanto isto é, como espero que se perceba, mais uma irritação do que uma vontade canina (o Ideafix, de novo) contra o homem, a pessoa pública, o músico tão incensado por milhares e milhares de portugueses. Assim sendo, adulterando o conhecido título literário de Nelson Rodrigues, direi que toda a surdez será castigada. Resta saber se será a minha, se a da maioria dos adoradores do criador de Viagens. Já agora, afirmo que não tenho qualquer pressa em relação a esse veredito.
O que me desagrada, e sempre me desagradou em Viagens, é algo que posso explicar com algum à-vontade, mesmo que seja tanta coisa. Faz parte do meu gosto pessoal, de uma sensibilidade que é a minha e que não quero, nem pretendo que seja vista como a verdade sobre o disco em questão. Assim, começo por um aspeto que em mim é sempre muito importante: a palavra cantada e a dupla instância que tal coisa envolve, o som e a substância da dita palavra. Mas vamos por partes. A voz de Abrunhosa é um arrastão, um móvel antigo que chia grosso quando transportado, uma peça de motor velho gemendo e a exigir substituição, um terrível som que ninguém merece ouvir. Essa voz mina o álbum todo, rigorosamente! Sei que há quem diga que Abrunhosa é muito bom músico, que vem do jazz e mais isto e mais aquilo. Eu, amante de jazz, digo sempre que, então, deveria ter por lá ficado e, sobretudo, sempre sem cantar. Mudou-se para a pop, e deu nisto.
Os temas mais conhecidos, os temas de sucesso do álbum como “Não Posso Mais” (nem eu, meu Deus), “É Preciso Ter Calma” (eu não tenho, confesso), “Socorro” (pois, lá está) e “Tudo o Que Eu Te Dou” (mas que eu dispenso, obrigado) poderiam fazer parte do alinhamento obrigatório diário de uma qualquer tarde da Júlia ou coisa equivalente. São fracos, cada um no seu particular estilo (hesitei ao escrever o substantivo) e particularmente enervantes. Os três primeiros são, digamos assim, festivos, mas de festa de feira popular, com carrinhos de choque e tudo, gordura nos dedos dos churros devorados. No entanto, o último ficaria menos mal na voz de um avô a tentar adormecer o neto, ignorando o pesadelo que lhe provocaria, quando a criancinha fechasse os olhos para o descanso desejado. Mas há mais. As letras, propriamente ditas, às quais o seu autor pretende dar recortes de estilo (nova hesitação na escolha desta palavra), mas que, afinal, e bem vistas as coisas, redundam em versos como “Eu não sei, que mais te posso dar / Um dia joias noutro dia o luar” ou “Tu és o meu sonho mais atrevido, / olho e tiro-te o vestido / dizes: “És doido varrido / faz de mim a tua puta” / “Como é, vamos p’ra casa experimentar o Kama Sutra?”. Estes versos tiram-me do sério, são pirosinhos, e qualquer coisa orgânica em mim regurgita, vem-me à boca, o que é sempre algo desagradável. É fatal como o destino. Enfim, não pretendo cansar-me com mais exemplos, muito menos cansar-vos com estes meus dislates, uma vez que a maioria das pessoas que vier a ler este texto, deverá pensar de modo contrário ao meu, o que, democraticamente, aceito.
Uma última nota, para terminar esta azeda viagem. A inscrição pessoana que abre este texto, como bem se sabe, é exortativa do prazer em ser múltiplo, coisa que acontece inúmeras vezes quando viajamos, quando descobrimos algo em nós que nos valoriza, ao estarmos em contacto com o outro. É bom, é muito bom viajar. No entanto, a viagem proposta em Viagens não me convence. Nem agora, nem no momento em que inicialmente foi proposta, lá pela metade da década de noventa. Para viagens destas, não me convidem. Não vou, nem nunca irei. Prefiro ficar em casa, ouvindo cinquenta minutos e meio de silêncio, que é mais ou menos a duração desse tão celebrado castigo sonoro.