O primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura 2018 foi um verdadeiro teste à resistência dos festivaleiros com um showcase de indie rock português e alguns dos nomes mais pesados do festival.
O festival começou com o rock alternativo dos Grandfather’s House, de Braga. Liderados por Rita Sampaio, cujos devaneios björkianos propulsionavam a maior parte das músicas, o grupo tocou a sua mistura de synthpop melodramático (algures entre Chvrches e Beach House) e rock alternativo puro, cortesia de Tiago Sampaio. É de salientar o uso inventivo do saxofone como “baixo” (para o qual foi convocado o grande João Cabrita), o seu tom irreconhecível debaixo de tanta distorção e pitchshift conferindo à música uma ligeira sonoridade trap. Os Grandfather’s House são bem sucedidos na sua caminhada pela linha ténue que separa a dance music do rock alternativo.
Para a hora mágica da passagem do dia para a noite tivémos direito ao encanto de Marlon Williams. Pelo reação à nossa volta, poucas pessoas o conheciam, pelo que a surpresa terá sido grande logo que Marlon atacou “The First Time Ever I Saw Your Face”, com a sua voz no ponto de rebuçado, ainda sozinho em palco com a sua guitarra. Só no final deste arrepiante arranque se juntaram em palco os Yarra Benders, banda que o tem acompanhado em tour. A receita para este concerto foi simples, Williams disse que nos amava, que amava Portugal e as casas de fado por onde tinha passado na noite anterior e nós fomos na cantiga e deixámo-nos embevecer, no que terá sido um caso clássico de amor à primeira vista. Mesmo tendo no seu portfolio um álbum quase na sua totalidade dedicado às amarguras de amor, o extraordinário Make Way for Love, quisémos acreditar que connosco ia ser diferente e que íamos ser felizes para sempre, nós, Marlon, a praia do Taboão como cenário de fundo (onde Marlon esteve a banhar-se durante a tarde). “Party Boy” precisou de um segundo arranque, no que foi a única pecha do concerto, irrepreensível, passando por momentos sublimes como “What’s Chasing You”, ““Nobody gets what they want anymore” e “When I was a young girl”. Trespassou-nos em mente laivos de Jeff Buckley e mais não é preciso dizer para mostrar a dimensão do momento.
O que há para dizer, em pleno 2018, sobre os Linda Martini que não tenha sido já dito? O grupo lisboeta é uma das instituições do indie rock português da decada passada, contando com 15 anos de existência e cinco discos de estúdio. O concerto começou com “Gravidade” e “Boca de Sal”, singles do último disco homónimo que confirmam que em 2018 os Linda Martini ainda conseguem escrever hinos de festival. Mas não podiam faltar também os clássicos, “Cem Metros Sereia” (que, pasme-se, não acabou o concerto), “Amor Combate”, “Mulher-a-Dias” e canções mais recentes como “Panteão” e “Dez Tostões”, esta última um portento quando tocada ao vivo e uma música que nos faz lamentar que os Linda Martini não tenham seguido essa direção, mais experimental, no novo disco.
Só o festivaleiro mais ingénuo creria que o concerto dos King Gizzard and the Lizard Wizard não seria um mosh-fest do início ao fim. A banda mal tinha acabado de tocar os primeiros acordes de “Digital Black” e já os fãs tinham começado o mosh, mantendo o registo até ao fim do concerto. Os australianos passaram em revista o magnífico 2017 que tiveram, revisitando Flying Microtonal Banana com “Rattlesnakes” e “Sleep Drifter”, Murder of the Universe, com “The Lord of Lightning” e “Vomit Coffin” e tocando as duas suites de Polygondwanaland, “Crumbling Castle” e “The Castle in the Air/Deserted Dunes Welcome Weary Feet”. Entre solos de guitarra estridentes, quebra-cabeças rítmicos e explorações de eteriedade, os King Gizzard provaram mais uma vez ser uma banda ímpar no que toca aos seus concertos, conseguindo render os fãs à sua mitologia muito própria mas sem nenhuma da pretensão associada a bandas que a tentam esfregar na cara dos fãs. As notícias sobre a morte do rock foram manifestamente exageradas, é o pensamento que nos fica após assistirmos cabeças a abanar desde a primeira fila até ao início do anfiteatro de Coura.
Ainda não tinhamos reentrado na estratosfera quando The Blaze nos voltaram a projetar para o espaço sideral. O concerto do duo francês pecou apenas por não ter sido maior mas não os podemos censurar: a sua discografia consiste num EP, Territory, e num single, “Heaven”. O palco Vodafone tornou-se um altar e o público mergulhou num transe (não se contou um único mosh durante todo o concerto), ouvindo o sermão a ser pregado debaixo de uma fina camada de vocoder por cima de beats paralizantes. “Virile”, “Territory” e “Heaven” tornaram-se colossais ao vivo; o seu sentimentalismo amplificado pela dimensão que o festival conferiu à música. A eletrónica melosa da dupla roça mais o house que o techno e os visuais que acompanham estas músicas complementam-nas e oferecem coerência a um concerto tão sólido e trabalhado que até houve direito a créditos no final da atuação, ao som de “Juvenile”.
Uma das revelações de 2018, Conan Osiris dispensa apresentações. O músico subiu ao palco acompanhado pelo dançarino do costume e, munido apenas de um microfone, entregou a sua mistura de cante alentejano da loja do chinês, música pimba extraterrestre e eletrónica duvidosa a um público que já a conhece de cor. “Borrego”, “Celulitite”, “100 Paciência” e “Adoro Bolos” são hinos, cantados com um vigor atordoado frequentemente por desafinos ligeiros. Contavam-se também no público uns quantos céticos e indignados. É claro que, quando falamos de um músico tão genuinamente idiossincrátrico como Conan Osiris, o amor-ódio é uma reação muito comum.
Texto por Miguel Moura e Alexandre Pires
Fotos por Inês Silva