Sempre que o amor de verão nos quiser, basta fazer um festival. Terminou mais um Bons Sons do qual saímos de coração cheio.
Dançar e suar ou repousar à sombra. Era este o dilema dos festivaleiros que já se reuniam no palco Zeca Afonso, a meio da tarde, enquanto assistiam ao concerto de Peltzer, projecto de sintetizadores e guitarras galopantes de Rui Gaio e Cató Calado. Ao quarto dia de festival, as bocas abriam de sono e os corpos faziam um último esforço para um dia que se previa cheio.
Luís Severo encheu o palco Giacometti como ainda não se tinha visto. Acompanhado por Manuel Palha, Bernardo Álvares e Diogo Rodrigues, o cantautor lisboeta viu as suas canções entoadas do início ao fim não por umas primeiras filas mas por todo o largo de São Pedro, que transbordava pelas ruas adjacentes, varandas e telhados. Os temas “Escola”, “Cara d’Anjo”, “Meu Amor” ou “Santo António” encheram as medidas dos muitos fãs que por entre gritos e lágrimas cantarolavam as letras. Loucura maior só quando Severo ficou sozinho em palco para um punhado de versos serenos à guitarra, acabando por chamar Bernardo Álvares e Manel Lourenço (Primeira Dama) a palco para as harmonias de “Lábios de Vinho”.
Foi também Manel Lourenço quem, pouco depois e juntamente com Lena D’Água, apareceu nas escadas da sede da junta de freguesia da Madalena para uma versão acappella de “Sempre que o amor me quiser”, que teve a ajuda de muitos que por ali passaram para escutar e ouvir o clássico num momento inesperado e risonho.
Rodrigo Amado e o seu Motion Trio, composto pelo próprio, o microscópico baterista Gabriel Ferrandini e o valente violoncelista Miguel Mira, subiriam a palco mesmo ali ao lado, no adro da igreja, para uma hora de bom improviso jazz para purificar os sentidos.
O sino tocava as nove badaladas e do palco Lopes-Graça saíam as primeiras notas de Dead Combo, ligeiramente prejudicados pelo volume excessivamente alto – um problema recorrente desse palco, que se tinha já tido especialmente no concerto de Mazgani. Bué peeps em palco. Com banda completa em palco, com destaque para a já antiga colaboração de Alexandre Frazão na bateria, o concerto teve ponto alto óbvio em “Lisboa Mulata”, tema do álbum homónimo no qual o público regozijou.
No mesmo palco teria lugar também um dos concertos mais esperados do festival: Lena D’Água e Primeira Dama com a Banda Xita. O jovem conjunto lisboeta fez um bom trabalho ao replicar a música da banda Atlântida nos temas do icónico Perto de Ti (1982) como “Carrocel Da Vida Na Cidade”, “No Fundo Dos Teus Olhos D’Água”, “Jardim Zoológico”, “Nuclear Não, Obrigado” e ainda o mais tardio “Dou-te Um Doce”. Por entre canções de Primeira Dama, incluindo “Rua das Flores”, que partilhou refrão com “Perto de Ti”, houve oportunidade para reapreciarmos a voz de Lena D’Água, pouco ou nada tocada pelo tempo, e as suas canções intemporais nas melodias e letras que as compõem. Deixando-nos com vontade de ouvir mais canções ainda, a cantora lisboeta e companhia fecharam em beleza o palco “principal” do festival de Cem Soldos, restando apenas para ouvir o concerto de Linda Martini.
Com tanto de fervoroso, nas escassas canções mais antigas, como de brando, nas mais recentes, a banda de Queluz trouxe ao palco Zeca Afonso um concerto equilibrado no qual viu fãs novos e velhos delirar com o seu muito próprio e intenso rock. Com direito a encore, a trupe composta por Cláudia Guerreiro, Pedro Geraldes, André Henriques e Hélio Morais entregou-se com gratidão às horas finais do festival, com Morais a dar graças pelos elementos da banda não terem seguido aquilo que os seus estudos lhes deram, antes a paixão pela música.
No fundo, é disso que se trata o Bons Sons. Uma celebração comunal, cada vez mais tradição e ícone do verão português, daquilo que se compõe, toca, canta e ouve em Portugal, do seu imensurável e inquestionável valor. Sem qualquer pendor nacionalista ou coisa que o valha, o festival totalmente organizado pela e na aldeia de Cem Soldos é um baú de tesouros que revela os sons e cantares comuns – mas tão distintos entre si – dos que vivem neste pequeno rectângulo à beira-mar plantado.
Pecando apenas por alguns pormenores técnicos – o volume por vezes excessivo do palco Lopes-Graça, uma anunciada sustentabilidade com muito por caminhar e talvez uma lotação ligeiramente acima do que seria respirável (em particular sexta-feira e sábado, dias obviamente mais concorridos) – o Bons Sons volta a cumprir o prometido, tendo provas mais que dadas de que não é apenas mais um festival no mapa e que veio pra ficar. E quanto queremos nós que fique.
Fotografia: Carolina dos Santos