A vida d´O Filho de José e Maria como nunca a ouviram, provavelmente. A proposta maldita de Odair José chegou ao Altamont!
Há muito que nos parecia interessante abordar este disco maldito da música brasileira dos finais dos anos setenta. O Filho de José e Maria foi uma autêntica bomba no panorama discográfico desses tempos idos do século passado, e as razões para tal acontecimento foram várias. Desde logo, por tratar-se de um dos artistas que mais vendiam na altura. Depois, por ter sido um flop comercial de tal tamanho, que terá ombreado com Araçá Azul, o famoso álbum que Caetano Veloso resolveu fazer apenas para entendidos, e que como o de Odair José, se tornou um elepê de culto, anos mais tarde. Ambos rivalizam (mas o do mestre de Santo Amaro da Purificação parece vencer a disputa) no aspeto do recorde da devolução em lojas de discos, por parte do público comprador.
Odair José era um artista extraordinariamente popular, de um tipo de música que hoje (talvez na altura também) diríamos ser brega ou, se quisermos moderar o rótulo, popular-romântico. No entanto, e a partir do lançamento de O Filho de José e Maria, tudo mudou na vida do homem nascido em Morrinhos, Goiás. A mudança foi de tal ordem, que Odair José deu um passo em falso, tão em falso que foram necessários muitos anos para que se recuperasse, uma vez que se foi envolvendo de forma vertiginosa em mundos perigosos e de enorme adição. Hoje, O Filho de José e Maria é um álbum histórico, cheio de peripécias que merecem ser conhecidas e lidas, se for essa a sua vontade, através da leitura de O Evangelho Segundo Odair, de Leonardo Vinhas (Editora Barbante, 2024).
Para muitos, é certo que o disco O Filho de José e Maria deveria ter sido uma ópera rock, a primeira a ser feita no Brasil. Ele contaria a história de um Jesus humano, tão humano como qualquer outra pessoa ao seu redor. Para mais, um Jesus que se apresentaria com muitas dúvidas sobre a sua sexualidade, com uma vida bastante precária, por vezes resvalando para os meandros das drogas. Ou seja, um enredo perfeito para ser uma autêntica bomba nas mãos e nos corações dos brasileiros, sobretudo os de cariz mais dado às coisas religiosas. A Igreja recusou militantemente o álbum, houve até quem propusesse a excomunhão de Odair José. A crítica especializada, talvez algo receosa sobre o objeto que tinha em mãos (convém pensar no tempo em que O Filho de Maria e José foi lançado), arrasou o LP, arrasou Odair José, e nada permaneceu como havia estado até então na carreira do artista. Foi difícil e sinuosa a recuperação do músico, assim como do disco.
Mas vamos ao que musicalmente o disco é, começando, no entanto, pelo que deveria ter sido, um álbum duplo de 18 a 20 faixas. Na verdade, o que passou para a rodela negra do vinil foi bem diferente: 10 temas apenas, que por decisão do próprio Odair, surgiram com a ordem lógica e sequencial trocada. A censura teve, naturalmente, um papel no emagrecimento do número das canções. Excelente, o grupo de músicos recrutado por Odair. Inatacável, até. Alguns membros dos extraordinários Azymuth ajudaram a dar corpo ao projeto.
Odair avisava, logo nos primeiros versos da faixa de abertura, que “Eu agora sou bem diferente / Não se assustem e nem se preocupem / Sou o mesmo de antigamente / Só que agora nada mais me encuca”, num ritmo disco- funk bem marcante. Na mesma linha, piscando um pouco o olho aos sons da Jovem Guarda, vem “Não Me Venda Grilos (Por Direito)”. Segue-se “Só Pra Mim, Pra Mais Ninguém”, uma balada que teria feito furor na voz de Roberto Carlos, noutro contexto, claro, afastando os pressupostos religiosos da relação entre José e Maria que a canção encerra. “É Assim”, divertida e roqueira, fala sobre a homossexualidade assumida pela personagem principal do enredo, embora não de maneira descarada, mas que deve ter feito corar um mar de gente, com toda a certeza, naquela altura. “Fora da Realidade” mantém o ritmo roqueiro, embora se encoste um pouco mais a uma certa tradição nordestina. O próprio Odair confessou, anos mais tarde, tratar-se de uma letra sobre o absurdo que é um anjo ter fecundado uma mulher, idealizando algo contrário à realidade humana. Segue-se “O Casamento”, abrindo o Lado B. É uma canção onde entram dois personagens cantando, dialogando, sendo que em ambas a voz é a de Odair. Canção algo desequilibrada por via de uma certa dramaturgia algo mal conseguida e incómoda ao ouvido. É nela que a ideia de uma ópera-rock mais se materializa. “O Filho de José e Maria” é calma, tranquila, embora o assunto seja sério. José e Maria separam-se e o menino Jesus sofre pelo afastamento de ambos, passando seis meses na casa de um e os outros seis na do outro. A atualização do procedimento do dito divórcio é óbvia, tornando-o semelhante aos dias de hoje. No entanto, é o sofrimento da criança que mais se nota: “Maria e José se amaram e um lindo menino nasceu / Depois eles dois brigaram e o menino sofreu”. E ainda, como consequência dos atos dos adultos, “Seis meses na casa da mãe, seis meses na casa do pai / E nessa roda da vida, a vida vai”. Em “O Sonho Terminou”, canção musicalmente menos conseguida, o dilema vivido por Jesus acaba por ganhar outros contornos, que acabariam por ser revelados de maneira mais óbvia em canções que ficaram fora do disco, e que só mais tarde foram dadas a conhecer. Afinal, a suposta homossexualidade do protagonista obedece a dúvidas mais amplas, em que o apelo da bissexualidade parece sair ganhador. “De Volta às Verdadeiras Origens” é bem funk, bem soul, com naipes de metais a pontuar a composição. A letra tem bastantes referências religiosas, como não poderia deixar de ser. O refrão é cantável (“Todo mundo tem problema / Quando vive sem amor”). O álbum fecha com “Que Loucura”, tema que deveria resultar festivo em palco, em que todos dançariam e cantariam “Mas que loucura (a gente ter que viver)”, canta-se no refrão. É a apoteose de um disco apoteótico, mas que muito pouco teve de triunfal e de extraordinário, no tempo em que surgiu. Vale ainda uma referência à capa e contracapa do disco, visualmente estimulante, em que Odair José surge de tronco nu, com ar meio hippie, e à volta da sua cabeça… o título em neon. As nuvenzinhas com um guitarrista e um pianista dão uma graça ingénua ao todo da imagem. A contracapa apresenta uma mesa em que, supostamente, deveriam estar, para além de Odair José, os doze apóstolos de Jesus. Nada disso. Há apenas pão, vinho… e instrumentos musicais.
Ouvir hoje O Filho de José e Maria é uma experiência curiosa e que vale bem a pena. Sem dogmas ou preconceitos, de preferência. O álbum levou Odair José à quase loucura e total desgraça. A si, se o ouvir, não lhe causará qualquer dano, estamos em crer. Afinal, é tudo uma questão de fé. Ou de falta dela, não é verdade?