A criatividade não se esgota nunca e, se estivermos perto de o considerar, devemos dirigir-nos ao concerto mais próximo de Mordo Mia, onde cada vez mais será complicado caber.
Não posso contar o que aconteceu nesta noite. Não posso, se não estrago tudo.
Pausa.
No fim, jaziam no chão os restos mortais de um sapo de cerâmica, deixados para trás pela plateia que, alegre, saía, comentava, sorria. Tinha passado a noite inteira a dançar e a cantar todas as harmonias e as letras de fio a pavio. A plateia. O sapo, coitado.
Aconteceram muitas coisas. Aconteceu muita música e muitas coisas que não são música. Ou não eram, até os Mordo Mia dizerem que o podiam ser.
É esta ideia do poder ser: uma banda que se move pela ideia da possibilidade e, consequentemente, pela experiência inocente que depois corre bem. Tenta-se, vê-se como fica. Fica bem? Siga. É dúbio? Melhor ainda.
Então foi assim:
Entraram. De robe, com ligaduras na cabeça e envergando suspensórios de pescador. O público aproximou-se, expectante. Já sabiam todos ao que vinham. Tocaram. Os espaços entre a plateia não estavam vazios, antes cheios – de energia, de entusiasmo –, preenchidos por um acordo mútuo entre músicos que estão ali para fazer um bom trabalho e espectadores que ali estão para serem deslumbrados e agradecerem o trabalho árduo.
Era a apresentação do álbum de estreia Sente-se Primeiro, trazido ao mundo uns dias antes. Há quem seja contador de histórias, há quem toque jazz, há quem seja theatre kid, há quem goste de brincar com a arte. Há quem faça tudo isto ao mesmo tempo. Os Mordo Mia não concordam com muito do funcionamento das coisas, incluindo caber perfeitamente numa caixinha só. A vida é muito curta para não se tocar bateria de costas e para não dedilhar um violino de forma tão apaixonada. A vida é demasiado curta para deixar que a humildade tome conta da primeira vez que se sobe ao palco do Musicbox. Que se faça a festa com tudo a que se tem direito, não permitindo que alguém saia com expectativas por cumprir. Não achaste nada de especial? Já vais ver.
Na era em que todos podem fazer tudo, cresce muito a ideia de que começa a ser difícil sermos surpreendidos. Cresce, porém, em erro. A criatividade não se esgota nunca e, se estivermos perto de o considerar, devemos dirigir-nos ao concerto mais próximo de Mordo Mia, onde cada vez mais será complicado caber. Não se levando demasiado a sério, são cómicos, fazem as coisas ao contrário e, com quatro instrumentos, mostram como se fazem noites bonitas.
O happening beckettiano de ontem promete um futuro brilhante.
*Fotografias do concerto brevemente
Well said, absolutely!