Memória de Peixe deixam-nos uma memória permanente com uma performance que foi muito mais que um concerto.
Há locais que não são destino, têm uma qualidade de passagem, um tempo incerto. Não estão aqui, nem ali. Estes espaços liminares permitem-nos dar voltas num tempo que não é o nosso. Sempre achei que estações de serviço possuíam esta qualidade liminar, de passagem. Estava justamente a ter este pensamento pousando os olhos naquela que está em frente à Culturgest, enquanto bebia uma cerveja a passar o dito tempo até à hora de entrada. Não esperava que pensamentos sobre o tempo, como ele passa e nós o sentimos, seriam tão relevantes para o tom da noite.
Já no opressivo e pesado edifício bancário, uma analogia direta para o tempo estático e inflexível se quisermos alguma, sentei-me no meu lugar para a viagem do concerto de apresentação de III dos Memória de Peixe. As luzes apagam-se e surge um holofote no nosso narrador da noite, João Pedro Mamede. “Bem vindo ao instante em que o acaso se cruzou”, abriu ele. Sozinho em palco, falou-nos de como o tempo se dobra, sobre a sua relatividade e como o iríamos viver naquela noite. Afinal, nem só gasolineiras são liminares.
Apaga-se o holofote e surge a banda com uma cenografia e luzes inusitadas por Bruno José Silva e Ângela Bismarck, respectivamente. Fumo inunda o palco e derrama para a plateia. João Hasselberg sentava-se com o teclado no lado direito do palco num laboratório retro-futurista, com fios e ecrãs misteriosos dignos de qualquer série de culto sci-fi dos anos 80, contribuindo para o misticismo. O resto da banda, com os seus emblemáticos impermeáveis fluorescentes, Miguel Nicolau (Guitarra, voz), Filipe Louro (Baixo, voz), Pedro Melo Alves (Bateria, eletrónicas) e Bernardo Tinoco (Saxofone) circundava uma estranha cápsula cilíndrica, o centro desta máquina do espaço e tempo.
Com “Good Morning” caminhamos lentamente e em crescendo para o ápice que é “Peacemaker”. Apesar da falta de José Soares, que gravou o saxofone no disco, Bernardo Tinoco não nos deixou sentir saudades com uma performance estonteante logo a começar em “3:13”, onde as luzes vibraram quase tanto como eu, como se estivéssemos a entrar no hiperespaço e todas as estrelas fogem do nosso caminho. Dá-se uma pausa e chegamos à nossa próxima paragem, debaixo do mar. Temos o cenário mais bem conseguido da noite, onde submersos vemos por uma janela a luz a entrar na nossa nave (talvez submarino seja mais acertado) refletindo os azuis e oscilantes movimentos de Poseidon. Ouvimos a narração: “Taking down forests to build furniture? Who’s going to pay? The children of the world” dando o mote para “Under the Sea”.
Viajamos dos fundos dos oceanos para o céu aberto onde voamos. O peixe anteriormente criado por holograma no coração cilíndrico do palco transforma-se em ovo. Observamos o nascimento de um pássaro e vemo-lo levantar voo ao longo de “El Vuelo”. Com a tranquilidade de “Close Encounters” a banda ganha fôlego para “Coincidentia”. Todos irrepreensíveis, com um incansável Pedro Melo Alves a encher ritmicamente este universo, Miguel Nicolau a dar-nos música que é difícil de perceber que vem de uma guitarra e Filipe Louro a segurar tudo no baixo.
Com mais um pequeno interregno, João Pedro Mamede retorna com um aviso: “É aqui que os mortos despertam”. Apaga-se o holofote e ouvimos uma criatura a rosnar das profundezas. Vemos-lhe os olhos enquanto percebemos o que nos está a tentar dizer: “Not Tonight”. Progredimos de criatura problemática a tons esperançosos e edificantes em “The Sun Inside Your Eyes”. Na mesma nota, entra em cena não uma bola de espelhos, mas um cubo de prata. Ouvimos melodias e alusões a “Good Night” indicando que estamos a chegar ao fim e é hora de ir para a cama. Porém, antes de ir, sai o cubo de cena e entra pela última vez o nosso narrador, despedindo-se de nós. Entra a ficha técnica, como seria de esperar depois deste filme sobre uma viagem alucinante e inesperada, ao som de “Golden Fiasco” e irrompe uma ovação em pé, que é pouco para o que se tinha acabado de experienciar.
Com apenas 3 oportunidades de aplauso, contando esta última, Memória de Peixe deram muito mais que um concerto, deram-nos uma memória que sem dúvida perdurará muito mais que aquela que os nossos camaradas submarinos possuem. A reimaginação do que um concerto pode ser, não uma banda a tocar instrumentos para um público, mas um teatro musical, uma viagem pelo tempo e pelo espaço. Com um som sem nada a apontar, controlado por Hugo Valverde e elementos de vídeo por Gonçalo Verdasca e Rui Major, que complementam uma qualidade técnica invejável em palco, foi elevado o que é música e como a vivemos. Saindo da sala, deparo-me novamente com a estação de serviço e pergunto-me se foi tudo um sonho acordado. A resposta é sim.
Fotografias de Vera Marmelo gentilmente cedidas pela organização























Estivemos lá… foi tudo isto e magia…