Até as estrelinhas mais incandescentes do universo têm de implodir um dia. E assim fez o nosso em tempos (e ainda) amado Mac DeMarco, com Here Comes The Cowboy, um estrondoso ressono de um disco que revela uma triste sombra de tudo o que nos fez por ele apaixonarmo-nos há mais de meia década atrás.
Mac DeMarco atingiu o cume da montanha, escalando disco após disco até montar a sua tenda dentro da estufa de um segredo que ainda julgamos bem guardado dos comuns ouvintes de rádio comercial, apesar de não ser segredo nenhum. Com 2, a estreia na Captured Tracks, no tão distante ano de 2012, agarrou com força as almas do mundo inteiro, graças às melodias bem dispostas e sumarentas, as guitarradas orelhudas e irresistíveis, uma narrativa sincera sem nunca se levar demasiado a sério e o seu ar de palhaço feliz. A sua aparente descontração, de quem faz parecer tudo tão direto, tão honesto e tão real, era contagiante e quisemos subir o pico com ele. Levou-nos para Salad Days, dois anos mais tarde, um álbum igualmente sólido, cheio de boas canções fixes para cantar no carro mas que haviam sido claramente compostas com um esforço honesto sentido em cada linha de guitarra e de teclado. Em This Old Dog, começámos a ficar para trás. As canções já não entravam sem esforço pelos ouvidos, e a sua característica boa disposição que nunca soava a forçada fora substituída por uma melancolia que, embora franca, sabia a amarga depois de todos os anos em que fomos construindo a sua presença no nosso consciente coletivo como um amigo tonho mas sincero, que não perdia muito tempo a pensar em nada sem por isso ser menos inteligente, com o qual podemos sempre contar para nos fazer fingir que é verão no inverno. Mas até aí, tudo bem, até os palhaços podem ser tristes. Mas em Here Comes the Cowboy, uma constrangedora amálgama do abatimento que já nos fazia adivinhar nas canções do seu último disco e uma tentativa falhada de recuperar a leveza dos primeiros álbuns, desviamos a rota e DeMarco acaba sozinho no topo da sua montanha solitária.
Mac DeMarco não tem direito a estar triste, é isso que estamos a dizer? Claro que tem. E tem direito a estar cansado, que é a emoção que pesa que nem um quilo de cimento ao longo dos treze temas que compõe este novo Here Comes the Cowboy, lançado a 10 de maio através da sua própria editora (uma estreia absoluta). Mas, enquanto a melancolia se traduz facilmente em boa música, a moleza mais dificilmente se ergue para nos deixar espreitar para além de uma sombra de canção. Depois de ouvirmos DeMarco a oscilar entre um esforço mal tentado de recuperar a magia de tempos passados e uma aceitação de uma inércia que simplesmente não estava lá dantes, quase que sentimos que a capa do álbum – uma simples carinha sorridente – não passa de uma cruel piada da qual ninguém se consegue rir.
As fórmulas gastam-se, claro. E a fórmula de DeMarco já ameaçava fazê-lo há um par de anos: o seu pastiche de Haruomi Hosono meets indie anglo-saxónico (admitamos, único na sua adaptação, que, aliás, já inspirou um milhão de cópias que nos fazem sempre regressar a DeMarco como uma referência improvável mas fundamental da cena indie dos últimos anos) havia de se esgotar um dia. Mas nunca aceitaríamos a possibilidade de chegarmos a 2019 e vermos o cozinheiro da sua própria receita sem saber muito bem o que fazer com ela. A desacreditá-la no seu ensaio de a falsificar. E o mais trágico nisto tudo é que ninguém o vai conseguir substituir, sem ser ele próprio, mas o “novo” DeMarco, um homem cuja criatividade parece ter sido sugada de dentro de si por um aspirador, não promete fazê-lo em breve, e certamente a missão não se cumpre neste Here Comes The Cowboy.
O álbum começa pouco promissor, com uma faixa título que se arrasta ao longo de uma sequência de acordes monótona e a frase que lhe dá nome durante três minutos que parecem nunca mais terminar. Depois disso, as coisas melhoram um pouco, e seguimos para a tristonha “Nobody”, uma luzinha num túnel sombrio, uma memória de baladas melhores do músico canadiano. Acaba por ser um dos momentos de maior sinceridade de DeMarco ao longo de todo o disco: ao escutar letras como “I’m a preacher / A done decision / Another creature / Who’s lost its vision” e “Let it go / Cash it in / For the creature / On television”, não conseguimos evitar sentir um certo desconforto ao adivinharmos a verdade da previsão de quem as escreveu.
Seguimos para a francamente esquecível “Finally Alone” (que ao menos oferece-nos um dos mais angelicais agudos da aveludada voz de DeMarco, uma das suas mais subestimadas armas), que se confunde com “Little Dogs March” para a qual podíamos aplicar exatamente a mesma descrição, sem tirar nem pôr. Apelidar “Preoccupied” de aborrecida é um elogio na medida em que é de uma dificuldade imensa encontrar palavras para sequer a batizar (fora uma linha de guitarra limpinha e cujo interesse se esgota na primeira vez que se ouve). As coisas não ficam muito mais famosas para além daqui: talvez se consiga destacar a doce “K”, balada Mccartney-esca dedicada ao seu amor de sempre que fará derreter até os mais gélidos corações, ou o suave single “All Of Our Yesterdays”, no qual DeMarco e a sua banda quase que recuperam o sol de temas passados como “Go Easy” ou “My Kind of Woman”. Tudo o que lhe confere o seu estatuto enquanto um dos melhores temas do disco, no entanto, retoma à sua similitude a canções melhores de um passado mais simples para nós e para DeMarco, e a vontade imediata é de ir escutar de novo essas músicas, e não estes pobres substitutos.
No entanto, por cada “K” ou “All Of Our Yesterdays”, temos de lidar com um “Choo Choo”, uma tentativa francamente humilhante de recuperar de forma plástica uma excentricidade que, no princípio, surgia de forma genuína, como um pai que tenta contar uma anedota mas erra na punch-line, ou um aborrecimento quase fatal causado pela colisão direta com temas como “Skyless Moon”.
Não é fácil dizer-se mal de um disco de uma figura tão universalmente tida como simpática: em tempos, a sua fórmula parecia e foi infalível, e resistir-lhe era ser careta. Hoje em dia, o careta é ele, a tentar em vão espremer de dentro dos seus dedos e cordas vocais cansadas uma magia que já só vive artificial. Os tempos passaram e passaram por DeMarco também. Dar uma nota negativa a este álbum é quase admitir derrota: se calhar já lhe passou, aquele rasgo de genialidade que sempre tomou com a humildade de quem nem sabe muito bem o que está a fazer ao mesmo tempo que faz tudo bem. Já fomos da guitarra ao sintetizador e do sintetizador à guitarra e do elétrico ao acústico e da sinceridade à palermice. Não o encontramos em lado nenhum. Mac DeMarco está exausto. Tomemos esta grande nega não como uma repreensão (quem conseguiria repreender uma das personas mais amáveis da música contemporânea?) mas como uma oportunidade para DeMarco fazer algo que talvez resulte numa cura: desistir, durante um bocadinho, descansar e encontrar um novo rumo que não esteja inundado pela inércia e artificialidade.