Este texto não é uma crítica musical, antes o breve relato de um pequeno-grande milagre que é encontrar um disco que há muito se desejava ter em vinil. Era Kid naquele tempo, e amava desesperadamente Seu Espião.
Há momentos de grande felicidade. Felizmente que sim. Tornam-se ainda maiores, quando totalmente inesperados. Em particular, no caso vertente, tive de esperar décadas, sem sequer estar à espera que ainda pudesse acontecer. Era o vinil, o vinil original, que tanto desejava, e cuja ausência havia sido mitigada pelo cd do mesmo álbum, há já bastante tempo. Mas entre a pequena e a grande rodela musicada, vai uma distância que julgaria não ser possível percorrer. Aconteceu! Aconteceu há duas semanas, mais coisa menos coisa, numa feira de vinil que se vai realizando em Benfica, à qual fui pela primeira vez. Bendita decisão. Para mais, não foi a única surpresa. Outra houve, também procurada há muitos e muitos anos, mas essa não é para aqui chamada, pelo menos por agora. Quem sabe, mais tarde, noutro texto futuro?
Mas é conveniente manter o foco, para que a estória continue. Dedilhando centenas de discos de vinil, eis que me deparo com ele, o desejado, o Dom Sebastião do pop-rock brasileiro, com a eterna rainha Paula na capa, sentada nos degraus de uma escadaria, em pose simples mas certeira, vestido justo e vermelho, curto. Ao lado, um pouco mais atrás, nas mesmas escadarias, os três selvagens masculinos em pose algo robótica, parecendo tudo menos as abóboras que se tornaram conhecidíssimas a partir dos anos oitenta. Nem queria acreditar em tal sorte! Até tremi! Capa imaculada, vinil que nunca deve ter sido agraciado por qualquer agulha ao longo da vida. E, para a sorte ser ainda maior, o preço foi tão ridículo que até parece vergonha mencionar. Nunca mais o larguei da mão, e pela feira andei mais de duas horas.
A 7 de fevereiro de 1984, o Brasil via nascer Seu Espião, primeiro longa duração dos Kid Abelha e os Abóboras Selvagens. Estourou no Brasil como fogo de artifício sonoro de uma (pelo menos) geração que se rendia ao brock como se não houvesse amanhã. É, acreditem, o único álbum que conheço (espero que a memória não me contrarie daqui a dias) em que qualquer das suas 10 canções são singles. Sim, singles com potencial de primeiro lugar de Top. Aliás, desse álbum sairam 7, para que percebam o que aqui se diz.
As canções e o tom de Seu Espião são do mais pop-rock possível, deliciosamente básicas, mais orelhudas do que as partes externas dos ouvidos do Dumbo. A crítica disse mal, muito mal, insurgindo-se por serem fúteis, descartáveis, superficiais e inúteis, musicalmente. O mesmo em relação às letras, cantadas pela deusa Paula Toller. Vaticinou-se o pior, que nunca singrariam no rock brasileiro que estava emergente e galopante, naqueles tempos. Disparate total. Foram reis durante muitos e bons anos, os Kid Abelha.
Vamos lá, então, dizer algo mais, se bem que pouca necessidade haverá. Basta colocarem Seu Espião a rodar para perceberem o encantamento teen que nele se encerra até ao final dos tempos. “Seu Espião”, “Nada Tanto Assim”, “Alice (Não Me Escreve Aquela Carta de Amor)”, “Hoje Eu Não Vou” e “Fixação” preenchem todo o Lado A, enquanto na outra face assentam as igualmente perfeitas “Como Eu Quero”, “Ele Quer Me Conquistar”, “Porque Não Eu?”, “Homem Com Uma Missão” e “Pintura Íntima”. Todas juntas são uma espécie de sonho da eterna juventude, hinos ao prazer de ser jovem, fatias sonoras de um tempo que a idade, essa maldita, rouba e afasta para sempre. Até a termos de novo nas mãos, claro. Por isso, o que aconteceu na feira que fui no dia 27 de setembro foi um autêntico regresso ao passado onde, na verdade, nunca estive como gostaria de ter estado, a ouvir Seu Espião em formato vinil, e não em cassetes BASF verdes, como verdadeiramente aconteceu nos idos e maravilhosos anos 80. A poucos dias de fazer 58 anos, dei por mim com 17, e isso é coisa que não tem preço, pois não?