O velho samba em novas mãos: Golpe de Vista é uma obra onde a modernidade transforma a tradição em algo que não é uma coisa nem outra.
Há muito que o samba deixou de ser samba, na concepção ortodoxa que estereotipou um povo inteiro. Nos anos 60, a bossa nova transformou-o em música de clubes fumarentos e caipirinhas desgustadas junto ao mar e à areia, conquistando o mundo. Nos anos 70, o samba foi alvo de uma saudável injecção de psicadelismo e estranheza estrangeira, convertendo-o em tropicália e conferindo-lhe uma direcção mais avant-garde (como exemplo, o óptimo Estudando O Samba (1976), de Tom Zé). Mais recentemente, a “veterana” Elza Soares aliou-se a um grupo de novos compositores contemporâneos, para quem o punk e o seu pós- não são segredos, escancarando as portas desta música ao século XXI. Insere-se Golpe De Vista neste último campo; o samba a largar a roupa velha e a apresentar-se mais modernaço.
Douglas Germano não é propriamente um novato na cena musical brasileira. É ele o responsável criativo por alguns dos temas dos fabulosos Metá Metá. Do seu círculo de amigos ou almas gémeas musicais, contam-se nomes como Crioulo, Marcelo Pretto ou a própria Elza Soares, que transformou a sua “Maria De Vila Matilde” – que surge, neste disco, menos desgarrada – num verdadeiro hino feminista (arrisca-se, até, dizer que depois da versão de Elza o original de Douglas parece uma simples versão de quarto). Há trinta anos a beber do samba, Douglas recusa-se rotular como sambista. Lá está; é a fuga ao estereótipo. O que há aqui são canções, belas canções, num disco que é o seu segundo e que surge como uma explosão.
No tema-título, com as palmas a dar lugar ao violão, canta assim Germano: “Meu samba não porta bandeira / Meu samba não é p’ra rezar / Meu samba não serve p’ra roda / P’ra outro sambista cantar / Meu samba tem sua maneira / Meu samba é do jeito que dá…” Isto não são “simples” palavras conectadas em verso e métrica; são uma declaração de interesses, um grito claro de que Douglas Germano absorve a tradição mas rejeita os seus dogmas. O samba é, antes de mais, sintoma de liberdade, e afixá-lo a uma única forma correcta seria insultar a sua génese. É um samba que não se dança, ou que talvez se dance, mas antes disso há que pensá-lo, senti-lo como a força que é.
Ao longo de 25 escassos minutos e vários instrumentos – em particular uma caixa de fósforos –, é sobretudo o violão que, as mãos de Douglas Germano, mais nos cativa. Acontece no tema-título, acontece em “Canção Pra Ninar Oxum”, na tensão em cordas presente em “You S/A” ou no balanço gostoso de “Lama”, que termina o disco com desejo envolto em promessa, ou vice-versa: “Um samba que fale das coisas do mundo / Um samba que ninguém precisa explicar / Há-de vir com a simplicidade / De qualquer amor…”
Em Golpe De Vista há espaço para tudo, desde que esse espaço seja conquistado através de um salutar orgulho libertário. Samba sem amarras, mas cheio de cor, como o futebol total dos holandeses – e o futebol é, evidentemente, influência para Germano, assim como as religiões e mitos afro-brasileiros, assim como a vida o é em geral. As canções aqui escutadas foram todas interpretadas conforme Germano as concebeu, mas deixando a porta aberta para que qualquer outro possa beber do seu espírito e criar algo ainda mais distinto, solto. Golpe De Vista na verdade é um aviso (e está disponível para download gratuito aqui): sejam originais, sempre.