Catorze anos depois de Grown Backwords, David Byrne traz-nos uma utópica fatia de esperança e contentamento. É fácil e bom gostar desta América pintada de fresco, que apetece colar na testa “I wellcome you to my house” e depois sair para a rua a cantarolar “Every Day Is a Miracle”.
David Byrne é um dos magos da música das últimas décadas. Quando começou, com os muito saudosos Talking Heads, era o que ainda hoje é, um nome incontornável do bom gosto, um autêntico porta-voz da música como arte sem cedências, nem facilitismos. A sua obra fala por sim, e serão poucos os momentos em que o seu trabalho possa ser olhado com alguma desconfiança. Aliás, nenhuns. Com a banda que criou nos anos setenta lançou, por exemplo, os míticos Fear of Music (1979), Remain In Light (1980) ou ainda Speaking in Tongues (1983). A solo, como se apresenta desde 1989, lançou outras tantas obras-primas: Rei Momo (1989), Feelings (1997) e Look Into the Eyeball (2001). Tendo em conta o génio criador desta meia-dúzia de pérolas, não há como não amar o escocês tornado americano e cidadão do mundo!
David Byrne já não gravava exclusivamente em nome próprio há algum tempo. Sempre atarefado com variados projetos (música, escrita, fotografia, entre tantas outras atividades), a verdade é que era sentida a sua ausência, coisa que American Utopia veio dissipar. Saído para o mundo a nove de março, este décimo primeiro disco a solo de David Byrne traz novidades e sorrisos largos, ou não fosse ele parte do projeto “Reasons To Be Cheerful”, ideia criada com o objetivo maior de trazer uma onda de positivismo ao acinzentado planeta azul. Assim, e depois de ouvirmos American Utopia com a atenção que o senhor Byrne nos merece, podemos dizer, para começar, que estamos felizes, e por essa razão lhe fazemos aqui a maior das vénias! Thank you, Sir!
Não falemos das pseudo-polémicas com Brian Eno que parecem ter surgido com este recente trabalho de David Byrne. Já tanto sobre isso se escreveu e tão pouco se disse. Falemos antes da música que ele nos traz. Desde logo, uma ideia principal: o autor de American Utopia continua igual a si mesmo, espécie de Salvador Dali da música com as suas letras surreais, a sua vertente arty incomparável, ritmos infecciosos e inteligência muito acima da média. Há dias, o amigo Caetano Veloso dizia, na sua conta do Instagram a propósito deste novo álbum, que David Byrne “é um dos meus artistas favoritos no mundo”. Faz sentido, até porque em ambos é a genialidade que acaba sempre por imperar. Neste caso particular, começa logo em “I Dance Like This”, tema delicado e tenso (a espaços), mas com um brilhantismo irrepreensível. É com ele que David Byrne ataca o álbum, afirmando, ironicamente, que “this is the best I can do”. “Gasoline and Dirty Sheets”, logo a seguir, insinua-se, dançante e cheia de charme. É, simplesmente, perfeita. Como também é perfeita “Every Day Is a Miracle”, verdadeiro tratado de surrealismo literário de grandíssima pena: “And God is a very old rooster /
And eggs are like Jesus, his son” ou “The Pope don’t mean shit to a dog” são versos que não se esquecem facilmente. No mesmo sentido, ouça-se com atenção a letra de “Dog’s Mind”, outro tratado de bem escrever, para melhor se pensar. Pérolas, atrás de pérolas.
Para uma América tão ansiosa e receosa de si mesma, o exercício de ouvir American Utopia pode trazer alguma tranquilidade, até porque “we’re only tourists in this life”, como nos diz David Byrne no funky “Everybody’s Coming To My House”. O álbum parece pensado para retirar algum peso ao estado do mundo, para lhe retirar parte da espada de ponta afiada e dramática cuja ponta todos os dias nos toca, atrevidamente, no pescoço. É sempre oportuno aliviar o stress, o que aqui se faz com alguma acuidade, embora não de forma pateta, tola ou ingénua. E assim, quem nos guia o raciocínio fá-lo com a perceção de que um olhar sereno e útopico sobre o mundo é, provavelmente, o melhor dos antídotos, uma vez que somos todos, desde sempre, filhos de Anteu e de Sísifo, e o peso dos séculos de existência que trazemos às costas torna-se cada vez mais insuportável. É preciso ar fresco, ar mental, ar que nos sufoque de esperança, de alegria, de vida.
American Utopia é um excelente álbum e um marco na carreira de David Byrne. Vamos descobrindo, à medida que o ouvimos uma e outra vez, tratar-se de um disco que vai ficar connosco meses a fio. Um sério candidato a lugares de grande destaque quando 2018 estiver a dar os últimos suspiros.