E aqui temos o disco homónimo. Esperem, então a estreia, em 1967, não havia sido com um disco homónimo? Sim. Mas o David Bowie de 1969 era já muito, muito diferente, do David Bowie de dois anos antes. Esse primeiro disco havia sido um fracasso comercial e uma nulidade crítica, levando Bowie a perder o contrato com a editora, que não sabia o que fazer com ele. Mas talvez tenha sido esse falhanço inicial a levar o artista em busca do que tinha realmente de único dentro de si.
Ainda dorido pela má ou inexistente reacção ao seu disco, Bowie colocou tudo em causa. Sabia que queria ser um artista, sabia-o desde criança, mas talvez a música não fosse o único meio para o conseguir. A transformação começou a ocorrer quando se inscreveu nas aulas de expressão física de Lindsay Kemp, um artista burlesco e um reputado mimo (está explicado o vídeo de “Ashes to Ashes”). Aí, Bowie encontrou uma liberdade de criação que nunca havia experimentado, começando também a dar atenção ao lado visual das apresentações, algo que nunca o iria abandonar. Mas encontrou outra coisa importante, uma namorada. Numa actuação do estúdio de Kemp para a BBC, o músico cruzou-se com a bailarina e actriz Hermione Farthingale, no início de 1968. Desenvolveram uma relação, necessariamente significativa para um rapaz de 21 anos, que acabou abruptamente um ano depois, quando Farthingale foi filmar para a Noruega, deixando em Londres um Bowie de coração partido.
Mas tinha também os horizontes mais abertos, pelas experiências de teatro extremo de Kemp, pela proximidade com os bailarinos e demais pessoal do showbiz. A versatilidade de Bowie nesta altura tem dois bons exemplos: entrou em anúncios para televisão, enquanto actor, e foi em digressão com uma primeira encarnação dos T-Rex… enquanto número de abertura, como mimo.
Para além de toda esta avalanche criativa, Bowie recebia os ecos dos EUA, onde a onda hippie estava a todo o vapor. Juntou-se a mais dois amigos e organizou noites de música folk ao vivo, que inclusive deram origem a um festival gratuito ao ar livre. Bowie nunca foi exactamente um hippie, mas este foi o momento da sua vida em que esteve mais próximo. Paz, amor, budismo, tudo encontrou lugar nesta altura, embora quase sempre disfarçado por detrás da ironia e da “persona” que já era Bowie.
É nesta conjuntura que surge o segundo disco, o segundo disco homónimo, numa tentativa de reescrever a História, de afirmar que, agora sim, Bowie havia encontrado a voz com que queria apresentar-se ao mundo. E, agora sim, o mundo haveria de ouvir.
A grande pedrada no charco do disco – e com influência extrema no arranque a sério da popularidade do cantor – veio com “Space Oddity”, que abre o disco. A história de Major Tom, astronauta, perdido no espaço a bordo de uma nave, que fala para o centro de controlo. É uma música com todo um mundo lá dentro, que nos fala de alienação, de beleza, de solidão, de desespero. A 11 de Julho de 1969, “Space Oddity” é editado em single, uns meros cinco dias antes da data prevista da chegada do homem à lua. Todo o mundo ocidental vivia obcecado com a era espacial e com esse evento em particular, e foi uma feliz coincidência – nas palavras de Bowie – que a música, essa música lenta, estranha e alienígena e, no fundo, tão humana, chegasse às lojas nesse mesmo momento. A carreira de David Bowie como músico estava finalmente lançada. Vendas, popularidade, elogios e presenças na televisão, tudo chegou nas asas desse fantástico single, ainda hoje uma das mais celebradas canções de Bowie.
O álbum propriamente dito não foi necessariamente um sucesso de vendas. Era ainda demasiado estranho, e a personagem encarnada por Bowie demasiado composta para a multidão que comprava discos. Mas uma coisa é certa: todos os putos que viram aquele vídeo (que conheceu duas versões, das quais partilhamos a primeira nesta página) na televisão dos seus pais sentiram que algo estava a mudar, algo de diferente e de excitante estava a acontecer. O impacto do single foi tal que, logo em 1972, aquando da sua reedição, este David Bowie de 1969 foi baptizado de Space Oddity, até para não gerar confusão com o primeiro disco.
O álbum – que ainda hoje não recebe o reconhecimento que merece por parte da crítica – é um longo caminho percorrido desde 1967. Em primeiro lugar, há um gigantesco salto em termos de coerência musical entre os temas (o primeiro single, curiosamente, é talvez a canção mais “fora” do disco inteiro). Temos nove temas, nos quais a linguagem estética de Bowie se encontra mais definida. A estrutura-base é a guitarra acústica, um contraste face à profusão de instrumentos da estreia, e sinal da sua contaminação folk. Mas não é um disco folk evidente, contando quase sempre com uma discreta guitarra eléctrica e, por vezes, com um som mais pesado, a meio-caminho do que Marc Bolan andava a fazer e o próprio Bowie faria anos mais tarde.
Há vários temas que se destacam, “Unwashed and Somewhat Slightly Dazed” e “Cygnet Comittee”, que foram alvo de muita rodagem posterior em palco, por exemplo. “Letter to Hermione” é provavelmente a canção mais bonita do disco e uma das mais bonitas de toda a sua carreira, dedicada à sua antiga namorada (isto apesar de, aquando da edição do disco, Bowie já ter conhecido Angie Barnett, com quem viria a casar pouco tempo depois). “Janine” é dos primeiros exemplos do Bowie-rock, com uma energia contagiante. “God Knows I’m Good” é um dos raros exemplos de temas mais antigos que encontraram casa no disco de 1969, podendo perfeitamente ter feito parte do primeiro álbum. E “Memory of a Free Festival”, que fecha o disco, recorda os dias do festival gratuito de música folk, com uma letra que nos remete para o ‘flower power’ que estava prestes a terminar.
David Bowie/Space Oddity/Man of Words, Man of Music (outro rebaptismo), de 1969, é claramente um disco, globalmente, mais conseguido que o primeiro. É a primeira transformação de Bowie, do vaudeville inicial para herói de uma nova geração, com um pé na folk, outro no psicadelismo esotérico, e começando a abraçar, lentamente, a energia da guitarra eléctrica que atingiria o seu expoente na sua fase glam, poucos anos mais tarde. Um álbum obrigatório, que lança sementes do futuro e que merece ser revisitado e ganhar o protagonismo, enquanto um todo, que o colossal “Space Oddity” sempre lhe roubou.