À sétima edição, o Capote Fest continua a consolidar o seu papel de promotor da música portuguesa emergente e, principalmente, a apurar a arte de construir cartazes de qualidade com poucos recursos!
No passado fim de semana – de 11 a 13 de maio – decorreu a sétima edição do Capote Fest, que como hábito, e princípio, é fielmente dedicado ao panorama musical emergente do nosso país.
Pelo segundo ano consecutivo, tive a oportunidade de viver este evento com as lentes e a pena do Altamont. Mais importante do que sublinhar o trabalho e a dedicação de pequenas organizações como a Capote Música – bem como a qualidade e vitalidade da música que se vem produzindo em Portugal -, será meter já as mãos na argamassa e relatar o que se passou nos três dias de Capote.
Quinta-feira, 11
As características da sala da Sociedade Harmonia Eborense (SHE) – larga, mas pouco profunda – tornam-na difícil para bandas pouco conhecidas ou sem falange de apoio. Nessas circunstâncias, a tendência é o público afastar-se do palco enquanto tenta perceber se gosta ou não. Resultado: no princípio dos concertos, ninguém se quer comprometer, a audiência concentra-se no fundo da sala, junto às suas (três) portas ou mesmo no foyer contíguo. Se a banda não convencer, a sala fica entregue aos músicos e aos técnicos…
Os The Crew Tones viajaram da Madeira, apenas na companhia da sua agente, de quatro temas no bandcamp e alguns vídeos no youtube. Apesar do natural nervosismo, causado pelas referidas circunstâncias, e pelo facto de não tocarem há já algum tempo, a verdade é que o stoner rock com salpicos grunge do trio insular foi progressivamente seduzindo o público da SHE e fazendo-o aproximar-se do palco. Alternando entre canções instrumentais e outras cantadas em inglês (ora pelo guitarrista ora pelo baixista), os The Crew Tones ofereceram-nos um alinhamento muito convincente, atingindo o ponto de alto da noite – e, arrisco, um dos do festival – ao musicar o poema “Fim” de Mário de Sá Carneiro, numa mais do que cativante mistura de texturas.

Sexta-feira, 12
Numa sala da SOIR JAA – Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António de Aguiar -, de cara lavada, e com mais espaço para público do que no ano passado, o segundo dia de festival arrancou com os Corrosão Social, cujo nome engana ainda menos do que o algodão – punk hardcore pejado de crítica social.
Formada em 2004, a banda de Évora esteve parada por uns bons, corrijo, maus tempos, tendo voltado ao ativo em 2021 com uma nova formação. 2023 trouxe o seu primeiro álbum (homónimo) com que brindaram os presentes na SOIR. Se os primeiros temas do concerto dos Corrosão Social, ainda com o formato clássico – voz, guitarra, baixo e bateria – já tinham conseguido agarrar o público, a entrada do par de saxofonistas veio pintar o cenário de ska e colorir o resto da atuação em tons de festa!

Os Humana Taranja vieram do Barreiro trazendo na bagagem Zafira – um dos discos deste ano que tenho ouvido e gostado mais -, muita energia e uma surpreendente maturidade musical para miúdos de vinte e poucos anos.
Ao longo de um concerto dominado por temas de Zafira – aos quais se juntaram mais três ainda por gravar – o público que ia enchendo a sala da SOIR pôde deliciar-se com os sabores dos ingredientes que tornam os Humana Taranja tão interessantes: composições de um indie pop simultaneamente inocente e intrincado, com ganchos melódicos e harmonias vocais encantadoramente orelhudas e dançáveis, cozinhados com uma vibrante pujança rock. No fim, para além de caras deslumbradas, ouvi umas tantas vezes a expressão “Soube a pouco!” Não só concordo, como acrescento “Soube-me a tanto”!

Dois músicos entram num palco e enchem uma sala. Sim, é certo, não são dois músicos quaisquer! Os Algumacena são compostos por dois músicos de nomeada – Alex D’Alva Teixeira (voz e guitarra) e Ricardo Martins (bateria e maquinaria), que aliam o virtuosismo a percursos artísticos ricos e estilisticamente diversificados.
À imagem do seu EP do ano passado, Que te Tira o Sono à Noite, a sua passagem pelo Capote Fest ajudou a provar que os Algumacena têm a capacidade de utilizar os seus predicados para construírem canções diretas, mas nunca simplistas, ancoradas num rock musculado que integra de forma equilibrada e coerente um vasto leque de influências e referências do hip-hop ao pós-rock, passando pelo soul e pelo jazz. Aliás, mesmo o referido virtuosismo – desde a forma como Alex Teixeira viaja dos agudos divinos aos guturais profanos, até aos dribles cegos dos compassos de Ricardo Martins – é sempre utilizado em função da canção.
Não é, por isso, de estranhar que o vosso escriba continue a trautear “Maior que o Medo” há mais de uma semana, ou que o Capote tenha dançado tão freneticamente ao som de “(Racistas, Fascistas) Não Passarão” – palavras de ordem de “(Mas) Ele não”!

E de um par poderoso passámos para um trio poderoso. A fechar a noite, Daniel Catarino (na voz e na guitarra) fez-se acompanhar de Manuel Molarinho no baixo e de Pedro Rafael na bateria.
Com o fresquíssimo Megafauna debaixo do braço, o trio atacou o set com ganas e energia para dar e vender. Guiado pelas letras pejadas de crítica política e social, temperadas com pitadas de sarcasmo – como, aliás, nos tem vindo a brindar desde os tempos dos Uaninauei -, Daniel Catarino, e companheiros, levaram o público numa viagem de rock’n’roll com muito blues e portugalidade à mistura, optando amiúde por desvios pelas sinuosas e interessantes estradas secundárias das divagações instrumentais (vulgo jams).
A entrega e a qualidade sónica da banda, em comunhão com um público que Daniel bem conhece ,criaram uma atmosfera perfeita para um fim de noite pintado por muita conversa, uns pezinhos de dança e as inevitáveis “abaladiças”.

Sábado, 13
Depois de um dia inteiramente cantado em português, a noite de sábado arrancou com o inglês dos locais Now We Can Talk. A estrear o seu novo EP Life is a Dream, e contando com uma bela falange de apoio mesmo junto ao palco, a jovem banda foi encantando os presentes com as suas composições cheias de melodia e paisagens sónicas muito convergentes com as correntes atuais do indie rock.

De seguida, Vasco Ribeiro trouxe-nos os Clandestinos, e com eles uma bem animada, e tremendamente interessante, proposta de revestir a música popular portuguesa com novas roupagens.
Penso que seja inteiramente natural e inevitável que as primeiras audições sugiram comparações com Sérgio Godinho – nomeadamente no que respeita ao timbre e forma de cantar de Vasco Ribeiro – ou que tentamos perceber a herança do gigante cantautor, e seus companheiros de viagem, como Jorge Palma ou Fausto, nas suas letras e composições. O concerto de sábado, no entanto, reforçou a ideia de que Vasco Ribeiro e os Clandestinos têm toda a legitimidade para reclamarem para si uma identidade muito própria baseada na forma como as suas canções passeiam fluidamente entre tonalidades folk, jazz ou mais próximas do rock. Da mesma forma, temas como o maravilhoso “Falem” ou “Vida de Cão” – estreado ao vivo nessa noite – são fortes sinais de que mais do que tudo, o Vasco soa ao Vasco, e que as suas canções conseguem cativar um público de estéticas tão heterogéneas como as do Capote.

A terceira banda da noite foram os eborenses Houdini Blues, cuja carreira se estende há já três décadas e seis álbuns. Os Houdini Blues apresentaram-nos um pop rock alternativo com uma forte componente arty e uma costela eletrónica, onde se encaixam uma vasta gama de recursos como a lírica poliglota (no sábado ouvimos português, inglês e francês), ora cantada, ora declamada, com pitadas de crítica social e humor, cheias de referências à literatura e ao cinema.

Como se ainda fosse necessário provar a diversidade e complementaridade do cartaz do festival, a Capote Música foi buscar os dUAS sEMIcOLCHEIAS iNVERTIDAS para durante 60 minutos alterarem a posição do eixo da Terra e depois voltarem a deixar tudo como encontraram … ou quase!
Os discos dos dUAS sEMIcOLCHEIAS iNVERTIDAS deveriam trazer o aviso: “não tentar isto em casa, sem a devida supervisão de um Terapeuta do Ruído!” É que misturar free-jazz com noise-rock, pós-rock, pós-punk e umas gotas de eletrónica pode resultar em algo perigoso.
Felizmente, a banda é composta por alquimistas sónicos que andam a manipular as referidas substâncias por esse país e pela Europa fora e, em Évora, durante uma atuação que orbitou à volta do último ep 卌, o público pulou, dançou e principalmente sorriu, de espanto e de prazer! No fim, não voltou tudo exatamente ao mesmo sítio … ficou melhor!

Para fechar a noite – e o festival – em beleza, o palco da SOIR recebeu os Black Wizard – mais um trio poderoso para animar as hostes do Capote. Tal como prometido pela organização, o concerto dos Black Wizards resultou numa intensa explosão de rock e emoções fortes!
As malhas de rock setentista vintage tecidas pelo groove potentíssimo de Helena – a Deusa do Rock -, apoiado no baixo ora mandão, ora protetor de Zé Roberto, serviram de estrutura para que Joana Brito pudesse estender a sua teia psicadélica à guitarra e à voz. Já passavam das quatro da da manhã quando se ouviram os últimos acordes dos Black Wizards, mas a energia era tanta que não se viu almas cansadas … apenas satisfeitas.

O balanço final desta sétima edição do Capote Fest é francamente positivo. Os organizadores Rita Piteira e Alexandre Tavares arquitetaram um cartaz pleno de diversidade e de bandas cujo empenho e energia, aliadas às excelentes condições técnicas proporcionadas pelos profissionais Fernando Mendes e Yoann Crochet (som), e João Pedro (luz), nos proporcionaram dez excelentes concertos! Venha o próximo!