Comovente, revelador, capaz de abalar até o mais empedernido dos insensíveis, o documentário de Amy Berg que nos devolve a genialidade atormentada e a frágil humanidade de Jeff Buckley esgota salas no Doclisboa, secção Heart Beat. E há boas razões para isso. Porque o trabalho da realizadora mostra como um artista maior do que a vida pode, afinal, ser o mais de carne e osso possível.
Como se lida com a perda? Como sobreviver à dor de ficar sem um filho? Como continuar a viver na ausência daquele amor que nos parece definitivo? Perguntas com esta profundidade têm encontrado respostas, na maior parte das vezes imperfeitas, ao longo de séculos. No documentário “It’s Never Over, Jeff Buckley”, em que a realizadora, Amy Berg, nos conduz pela mão ao longo da (demasiado curta) vida do artista, não é que tenhamos respostas. Mas ficamos com um vislumbre do amor e da dor que marcam quem mais o amou. E que, se Jeff aspirava a ser lembrado como escritor de canções, também era apenas mais um ser humano sensível e vulnerável que desejava amar e ser amado.
Mary Guibert, a mãe, numa comunhão tão completa com o filho que confessa terem crescido juntos em Anaheim, na Califórnia; Rebecca Moore, a primeira namorada, atriz de teatro experimental, música e ativista pelos direitos dos animais; Joan Wasser (notabilizada no percurso musical como Joan As Police Woman e que, em 2018, reconheceu ter sido a morte precoce de Buckley a forçá-la a cantar – era violinista até aí -, porque “a dor era de tal forma devastadora” que não tivera outro lado onde depositá-la, “a não ser na voz”), a última namorada, são muito mais do que estes papéis – são, a um tempo, as vozes mais íntimas e capazes de fazer justiça à dimensão humana e artística de Jeff.
Nada fica para trás, desde logo o sonho musical frustrado de Guibert, filha de imigrantes panamianos que aprendeu a tocar violino e piano mas, aos 17 anos, já estava grávida de Tim Buckley, o cantautor e pai sempre ausente de Jeff que, 15 dias depois de ter passado uma semana com o filho de oito anos, morreu de overdose. Tinha 27 anos. Passará a estar muito mais presente após a morte do que em vida (pelo menos nas comparações e nas perguntas com que Jeff é confrontado).
No documentário, além de imagens, mensagens e depoimentos inéditos do próprio Jeff Buckley, estão a música desde a infância, o encanto decisivo ao ouvir Diana Ross cantar “Ain’t no Mountain High Enough” e a sua admiração por nomes como Edith Piaf, o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan (o seu Elvis, como admitiu, e a quem surpreendeu no final de um concerto) ou Nina Simone; a criança que se colocava em cima das colunas de som para sentir melhor a experiência; os insultos na escola, porque uma voz absoluta de quatro oitavas como a sua era incompreendida – chamavam-lhe “maricas” e “estranho”; o deslumbramento com a revelação, feita pelo padrasto, dos Led Zeppelin – dirá sempre que faz música em que há uma mistura de “amor, raiva, depressão, alegria e… zeppelin” (ao amigo Ben Harper caberá recordar um episódio insólito: o momento em que, num concerto Jeff trepou pela estrutura do palco acima para ouvir melhor Robert Plant e Jimmy Page, metade dos idolatrados Led Zeppelin).
Também lá estão a entrada na cena artística nova-iorquina, as sessões em que toca versões de outros e canções da sua autoria no bar Sin-é da East Village, nas quais foi descoberto por público e editoras discográficas; a gravação do álbum “Grace”, que recebeu enorme elogio de David Bowie; a fama instantânea e o desconforto por ela gerado; a digressão de quase três anos com os companheiros da banda. Lá está, eloquente como nenhum outro, Karl Berger, compositor e maestro do universo do jazz que tratava por tu personalidades como Ornette Coleman, Jack DeJohnette, Carla Bley, Ed Blackwell, John McLaughlin, Bill Laswell, Dave Holland, Lee Konitz, Anthony Braxton ou Angélique Kidjo, a contar que Jeff ouvia a música de Shostakovich ou Bill Evans. E a deixar a pertinente pergunta: “Quantos músicos pop conhecem que saibam quem foi Shostakovich?”
Claro que não falta a pressão das editoras com a exigência insistente de um segundo álbum (“Sketches For My Sweetheart the Drunk”, que deixou inacabado); dúvidas sobre si próprio; álcool e heroína como mecanismos de fuga; desaparecimentos durante dias para se isolar; alucinações, ataques de pânico e depressão; o isolamento numa casinha em Memphis; telefonemas e voicemails para a mãe, as namoradas, os amigos, pouco tempo antes de morrer.
Não faltam a assombrosa versão de “Hallellujah”, que superou o original de Leonard Cohen, nem “Lover, You Should’ve Come Over”, entre diversos momentos no palco e em estúdio. Haverá quem considere insatisfatória essa soma de ilustrações musicais. E talvez tenha razão. Mas, para quem assim pensa, vale a pena lembrar que poderia ser bem pior: poderia ser um biopic sobre Jeff com Brad Pitt, não como produtor executivo (que é neste documentário), mas a fazer o papel do “herói” (que a mãe não permitiu).
Quase 30 anos depois da sua morte por afogamento, a 29 de maio de 1997, no rio Wolf, em Memphis, quando tinha 30 anos, qualquer pretérito é mais-do-que-imperfeito para se referir a Jeff Buckley. Porque, como acontece com a generalidade dos génios, a sua vida é de ontem, de hoje, de sempre. Nunca acaba, conforme diz o título do documentário.