É Fevereiro e finalmente chegou a vez de Lisboa e Porto receberem a visita do jovem holandês Jacco Gardner. Frequentemente comparado a Syd Barrett, o músico esteve presente em terras lusitanas para um concerto intimista e bastante lotado. Lá fora era já noite e chovia, enquanto corríamos pelo meio da água que caía das nuvens em busca de um local calmo e silencioso para pôr a conversa em dia. Além de conversarmos sobre muito do que se passa na cabeça de Jacco, depois de nos sentarmos numa convidativa mesa de restaurante, falámos ainda um bocadinho sobre o estilo musical que recentemente tem vindo a reaparecer: a música psicadélica. Com um jazz leve a fazer de banda sonora, Gardner abriu ao Altamont as portas do seu gabinete de curiosidades:
Altamont: Já passou um ano desde que saiu Cabinet of Curiosities. O que é que nos podes dizer sobre esse ano?
Jacco Gardner: Bom, houve tanta coisa a acontecer, não saberia por onde começar. Temos andado em digressão, com concertos quase todos os dias. Tem havido muitos comentários positivos em muitos países e estou muito feliz com isso.
Canções novas, tens escrito? Já há datas para o novo disco?
Sim, tenho trabalhado numas demos. Espero que o disco esteja pronto ainda este ano, mas ainda tenho que juntar tudo e passar muito tempo no estúdio antes de saber quando é que o ponho cá fora.
Vais gravar tudo sozinho, como no primeiro álbum?
Sim. Apesar de ter menos tempo para o fazer, vou tentar fazer o mesmo.
Cabinet of Curiosities é uma espécie de colecção de canções que escreveste ao longo de oito anos. Quais serão as diferenças em relação ao próximo disco?
Não terei canções escritas num período de oito anos mas sim de um ano, portanto será bastante diferente e terei tempo para pensar na composição como um todo em vez de simplesmente juntar canções e fazer disso um conjunto. Vai reflectir melhor a maneira como me sinto, em vez de reformular o que já tinha feito antes, por isso será diferente.
E quanto à sonoridade? Vais manter a linha do primeiro?
Acho que o que fez o Cabinet of Curiosities fez o Cabinet of Curiosities, não farei outro igual. Mas sim, psicadélico, um bocadinho mais orgânico. O primeiro é quase como uma composição clássica, com estruturas muito claras e estritas. Não há muita improvisação, que haverá mais desta vez. Talvez seja mais psicadélico nesse sentido.
Tiveste aulas de música ou és auto-didacta?
Sou mais auto-didacta, apesar de ter tido aulas de baixo e violino.
Influências. Além dos anos 60, que outras coisas te influenciam mais? A paisagem holandesa contribui de alguma maneira?
Nem por isso. Inspiram-me mais os artistas que gosto, principalmente do Reino Unido e dos Estados Unidos. Alguns filmes também, coisas assim.
Ouvimos dizer que não te sentias muito bem por ter nascido na Holanda.
Não é assim tão mau. Não é o pior país para se nascer mas também não é o sítio mais apaixonante, em termos musicais. Nos anos 60 e 70 fez-se muito boa música mas hoje em dia é um bocado desanimador.
Fã de Shocking Blue?
Eu adoro Shocking Blue.
Preferias viver nos anos 60 ou preferes viver neste século, sendo que a tecnologia te permite descobrir o que de bom se fez na altura?
A minha imagem dos anos 60 é muito romântica. Não sei se preferia viver nessa altura, por isso não consigo dizer muito sobre isso. Talvez gostasse de lá viver durante uma semana ou duas e depois voltar.
Achas que estamos a viver um novo movimento psicadélico, com bandas como os Tame Impala, Toy ou Temples?
Sim, é definitivamente algo que está a acontecer. Há muita gente interessada nesse tipo de música por ser uma maneira de escapar à sociedade.
Conheces outras novas bandas psicadélicas?
Gosto muito de uma banda chamada Quilt e outra chamada Maston, são muito bons. Gosto também de algumas canções dos Unknown Mortal Orchestra. Há muita coisa por isso não sei por onde começar, mas estas são as principais.
Consegues definir a palavra “psicadélico”?
Psicadélico, eu acho, tem a ver com a psique de uma pessoa. A música psicadélica entra muito na psicologia de uma maneira que não é muito linear mas que faz a música invocar imagens. Imagens do passado, imagens do futuro…acho também que a música psicadélica tem de ser a banda sonora dos sonhos porque também são uma coisa bastante psicológica. Muita coisa acontece na tua mente quando sonhas, muito simbolismo inexplicável. Acho que a música psicadélica é uma maneira de comunicar isso tudo.
Quanto a drogas, sentes que são precisas para fazer música psicadélica?
Não, definitivamente não. Acho que não são precisas drogas para se atingir esse estado de espírito. Eu nunca precisei e acho que nunca vou precisar.
E uma coisa não leva à outra? O que a música psicadélica faz sentir e pensar não abre, de certa forma, portas para as drogas?
Talvez, mas não é a única maneira de abrir a mente. Há muitas maneiras de o fazer. Uma delas é simplesmente ouvir música psicadélica, que foi criada sob o efeito dessas drogas. Se ouvires muito esse tipo de música, entras no mesmo estado de espírito sem tomar drogas porque a música faz o trabalho. A meditação ou até simplesmente sonhar são outras maneiras de atingir um estado de espírito bastante psicadélico. Se fores dormir e tiveres um sonho maluco e inexplicável, por exemplo, entras nesse estado de espírito sem quaisquer drogas. Toda a gente consegue fazer isso.
Já tiveste algum sonho lúcido?
Oh sim, já tive vários.
Serviram de inspiração para alguma canção?
Mais ou menos. Por acaso, noutro dia, tive um sonho em que ouvia uma peça de música que ainda não tinha composto na vida real mas conseguia perceber que era a minha voz, com os acordes e tudo o mais. Quando acordei lembrava-me vagamente da canção mas não o suficiente para trabalhar nela. Ainda assim, lembro-me de ouvir na minha cabeça um produto finalizado, que tinha “composto” no momento. De certa forma, isso inspira-me bastante. Os sonhos inspiram-me sempre muito, mas não da maneira mais directa. Não escrevo uma canção sobre um sonho em particular, não funciona assim comigo.
Durante a digressão, consegues escrever canções? Elas nascem de trabalho duro e insistência ou de pura inspiração?
Sim, consigo. Acho que nascem das duas coisas, são ambas necessárias. Acho que o trabalho se torna duro quando não é fácil. Às vezes é fácil, outras vezes não, acho que todos os artistas são assim.
Mas decides escrever uma canção ou isso é aleatório?
Bom, isso está sempre na minha cabeça. Eu quero sempre escrever canções e gosto de criar e levar uma coisa até ao fim, mas nem sempre consigo escrevê-las. É como ser pintor e querer pintar mas nem sempre estar apto para o fazer. É a diferença entre uma profissão e o mundo artístico. Eu tenho os dois, por isso tenho de ser um profissional a fazê-lo, enquanto sou um artista.
Agora, uma pergunta mais complicada: Syd Barret ou Zombies?
Ui, não sei. Não prefiro uma em detrimento da outra. É talvez a resposta mais politicamente correcta que consigo pensar. Provavelmente é esperado que eu diga isto, mas não sei mesmo, não consigo preferir uma das duas em vez da outra. Adoro os Zombies e adoro o Syd Barrett. Se o Syd ainda fosse vivo e não tivesse ficado maluco e tudo o resto, então talvez estivesse mais interessado em conhecê-lo, visto que já conheci os Zombies e eles não são assim tão especiais. Portanto, de certa forma, seria mais interessante conhecê-lo porque os Zombies ainda estão a fazer coisas e já não são tão bons. O Syd Barrett morreu como uma lenda, o que o torna mais interessante para mim. Ainda assim, não prefiro um dos dois, são ambos espectaculares.
Banda ou canção favorita?
Há tantas. Mas se tivesse de dizer uma agora, provavelmente diria a banda que começou tudo. Para mim, tudo começou com os Pink Floyd e o Syd Barrett. Já não os ouço assim tanto, mas ainda é uma banda muito importante para mim.
Qual é o teu disco favorito dos Pink Floyd?
Provavelmente o The Piper at the Gates of Dawn, visto ser o único álbum que o Syd fez inteiramente com os Pink Floyd. Também gosto imenso dos álbuns dele a solo, especialmente o The Madcap Laughs. Os outros álbuns deles têm canções muito boas também, como a “See-Saw” do A Saucerful of Secrets. Essa música tem algo que nenhuma das outras tem, por isso é difícil de comparar.
Achas que os Pink Floyd perderam a maneira psicadélica de pensar que tinham com o Syd Barrett?
A música deles não é a maneira mais directa de fazer música psicadélica mas acho que depois de ele sair ainda tinha muito a ver com tudo o que é psicológico, aquilo em que pensas e com que sonhas. Ainda era muito emocional, sinfónico e atmosférico, de certa forma.
Tiveste tempo para visitar Portugal, apesar do tempo não estar o melhor? O que achaste do público?
Sim, o tempo hoje está terrível. Mas já visitei Portugal várias vezes antes, os meus pais têm cá casa e eu gosto muito. O público também foi muito bom. Foram espectaculares, estavam mesmo dentro da música, muito atentos e silenciosos no momento certo, enquanto que noutros momentos estavam bastante entusiasmados. Senti que ouviram tudo muito bem.
(Fotos: Francisco Fidalgo)