Nesta entrevista ao Altamont, Sérgio Hydalgo, programador cultural e um dos responsáveis pelo festival Vale Perdido, partilha a visão, os desafios e as motivações por trás de um dos eventos mais ecléticos e inovadores da cena musical lisboeta e explica como a programação independente permite apostar em propostas arriscadas e diversificadas, desde artistas consagrados como Bonnie Prince Billy até nomes desconhecidos da música tradicional da Guiné-Bissau. O festival, pensado para promover a circulação entre diferentes espaços e estilos, reflete a paixão dos organizadores pela música e pelo potencial de descoberta que Lisboa oferece.
Altamont: O que podemos esperar desta edição do Vale Perdido?
Sérgio Hydalgo: Esta será a terceira edição do Vale Perdidol. Continuamos a programar de forma independente, apostando em propostas que queremos muito ver ao vivo e que acreditamos fazer sentido partilhar.
A programação é eclética e plural, pensada para Lisboa, que é uma cidade grande e diversa. Queremos trabalhar com vários espaços, alguns convencionais e outros menos óbvios, e trazemos artistas consagrados, como Bonnie Prince Billy, que é um artista que tem vindo a Portugal com regularidade, mas que já não vem há oito anos, vai ser um regresso importante… mas também apostar em propostas que são menos conhecidas ou mesmo totalmente desconhecidas.
O objetivo é criar uma programação capaz de traçar uma tangente ao universo da canção, passando pela exploração sonora, pela música eletrónica de artistas baseados na Tanzânia e pela música e dança tradicional da Guiné-Bissau, sempre com a intenção de apresentar propostas ousadas, abertas e que não se confinam a um único nicho.
Queremos que as pessoas circulem pela cidade e descubram música nova, e partilhar a nossa paixão pela música com o maior número de pessoas possível.

Como escolhes os artistas para o cartaz, sobretudo os menos conhecidos, e como equilibras nomes tão diferentes num espaço cultural tão diverso?
A programação é partilhada [Sérgio Hydalgo, Joaquim Quadros e Gustavo Blanco], não é feita exclusivamente por mim. Conversamos entre todos e procuramos uma programação que envolva vários universos que nos interessam. Todos gostamos de descobrir música nova e, nessa descoberta diária, algumas propostas despertam mais interesse, seja por terem um disco novo ou por ser a primeira vez que vêm à Europa. Procuramos perceber o que acontece noutros contextos, circuitos e festivais, mas também queremos incluir música que faz parte do nosso panorama cultural e que merece ser celebrada, como a música da Guiné-Bissau este ano.
Em edições anteriores tivemos estilos como o Kotxi Pó [Funaná contemporâneo em ritmo acelerado] ou as Batucadeiras das Olaias [Cabo Verde], que fazem parte do ADN da cidade, seja uma cidade mais central, seja mais periférica, e que achamos que, se forem apresentadas num contexto específico, em que poderá haver outras propostas completamente diferentes, em espaços que, se calhar, não são espaços onde, por norma, estes artistas passam, isso vai trazer uma releitura desses artistas que são fundamentais e que nos diferenciam de Madrid, ou de Nova Iorque, ou de Londres, ou de Paris, e que fazem parte da nossa cidade. Queremos apresentar estas propostas em contextos diferentes, para que ganhem uma nova leitura e valorização.
Como se consegue o equilíbrio entre géneros aparentemente opostos, como Bonnie Prince Billy e música eletrónica da Tanzânia, para criar um festival coeso e com conceito?
Esse equilíbrio depende muito da intuição e da sensibilidade. Bonnie Prince Billy, por exemplo, é um apaixonado pela história da música de todo o mundo, e acreditamos que o seu público também estará aberto a novas propostas. Queremos acreditar que o público é curioso e que não deseja repetir sempre as mesmas experiências. Tal como na gastronomia, não queremos comer sempre o mesmo; buscamos variedade e queremos normalizar essa diversidade.
Como procuram captar o público para experiências sonoras diferentes e alicerçar essa abertura?
As propostas têm força própria e conseguem despertar interesse imediato, seja através de um vídeo ou de uma atuação ao vivo. Por exemplo, o concerto da dupla ucraniana [Adriana-Yaroslava Saienko e Heinali], que vai tocar na igreja, está praticamente esgotado, mostrando a abertura do público.
Eu vi esse concerto há alguns meses e percebi, pela energia da sala e pela experiência que tive, que poderia chegar a muitas outras pessoas. Ou seja, é acreditar que o público realmente tem essa abertura e que precisamos transmitir essa mensagem, despertando o interesse das pessoas.
Quem for curioso vai querer explorar nomes menos mediáticos do nosso cartaz. Queremos que as pessoas estejam disponíveis para a descoberta e naveguem entre diferentes espaços e estilos, que passem pelo B.Leza e depois atravessem a estrada para ir à Lisa ouvir algo completamente diferente. Gostávamos que as pessoas também estivessem abertas para irem à descoberta [da música].

Por que decidiste iniciar o projeto Vale Perdido? Sentiste que havia alguma lacuna na cena musical de Lisboa?
Sim, foi precisamente isso. Programo há alguns anos e percebi que organizar eventos concentrados no tempo e no espaço traz desafios próprios. Lisboa é uma capital europeia com muita oferta cultural, mas não existe um evento que permita ir da canção à exploração sonora, passando por universos mais recônditos da música global ou por DJ sets.
Ainda há muito para expandir, e esta é apenas a semente de algo que pode crescer. O festival aposta em propostas menos conhecidas porque é independente e não sofre a pressão dos grandes festivais. Claro que existem outras pressões (risos), mas não as de um festival de grande dimensão.
Queremos proporcionar experiências especiais e partilhar o nosso entusiasmo. Alguém que chegue a Lisboa para ver nomes mais conhecidos, como Joanne Robertson, e acabe por descobrir grupos da Guiné, da Tanzânia ou esta dupla ucraniana, terá uma experiência única. Acredito que é isso que torna o festival especial: a oportunidade de descobrir novas músicas, apaixonar-se por sons desconhecidos e querer explorar ainda mais. E é isso que nos faz continuar a fazer isto.

Quais são as expectativas para esta edição?
As respostas têm sido muito positivas e estamos entusiasmados — se não estivéssemos, não faríamos isto! (risos) O concerto do Bonnie Prince Billy está esgotado, o da dupla ucraniana quase esgotado, e esperamos que os restantes também tenham uma boa adesão. Todas as propostas são especiais e únicas.
Qual foi o momento mais memorável das edições anteriores?
Houve vários momentos marcantes, mas destaco um da primeira edição, no 8 Marvila, um antigo armazém industrial. Tivemos um concerto de Nihiloxica, uma banda com elementos do Uganda e dos Países Baixos, seguido por uma atuação das Batucadeiras das Olaias, que foi extremamente emocionante. Ver essas artistas atuar, dançar e cantar naquele espaço teve um impacto enorme.
Repetimos a experiência no ano passado, no Cosmos, e percebemos o efeito que estas propostas menos conhecidas, mas impactantes têm no público. Queremos repetir este ano, encerrando o festival com uma matiné no Cosmos: música e dança da Guiné-Bissau, um concerto de Benjamim Furtado, que acaba de lançar um disco muito forte e aventureiro, um set de DJ Carin e gastronomia africana providenciada pela Associação AfriCandé.
De que forma a tua experiência como programador influenciou a conceção do Vale Perdido?
Acho que há uma dimensão social e política que, quando comecei a programar, talvez não tivesse tão presente – obviamente existia, mas não era tão evidente para mim. Com a experiência, percebi a importância de dar espaço a quem normalmente não o tem e de arriscar com formatos menos convencionais, conjugando universos artísticos e potenciando cruzamentos e formatos híbridos.
Ainda há muitas coisas que queremos explorar… O Vale Perdido é um projeto que fazemos inteiramente por paixão; queremos, arriscamos e entregamo-nos por completo para que funcione.
Queremos continuar a fazer isto de forma independente, mas gostaríamos de ter apoios que permitam estruturar o festival. Há muita coisa que queremos tentar que aconteça na próxima edição, muita coisa ainda por fazer em Lisboa dentro do Vale Perdido, e queremos continuar a fazer isto sem constrangimentos artísticos, mas obviamente com outras condições, em termos de propostas que queremos dinamizar.
O que significa o nome “Vale Perdido” para ti e como reflete a filosofia do festival?
O nome faz sentido para Lisboa, transmite magnetismo e possui uma dimensão poética que admite múltiplas interpretações.