O Basqueiral já não é propriamente um segredo, ainda assim, deixo o convite a quem ainda não veio cá: atrevam-se!
Resistir, persistir e prosseguir. Resistir à tentação da normalidade, persistir na ideia certa e prosseguir no caminho que nos conduz ao lugar que tanto almejamos. São estes os propósitos do Basqueiral, que já não são exclusivos às pessoas que o organizam, mas a toda a comunidade que ali se junta num fim de semana de junho. É incrível poder sentir isso e fazer parte deste mundo paralelo, com um cenário de surpreendente beleza. O Basqueiral já não é propriamente um segredo, ainda assim, deixo o convite a quem ainda não veio cá: atrevam-se!
Dia 01
Rumo a Santa Maria de Lamas que, por felicidade, é já aqui ao lado, para a nona edição do meu Basqueiral. Como sempre, há nomes no alinhamento que conheço bem, outros que ouvi falar e outros que nem por isso. Nunca fui fã de trabalhos de casa, por isso algumas atuações serão perfeitas descobertas, como eu muito aprecio.
A primeira atuação desta edição aconteceu no Palco Capela, um lugar mágico, sendo as honras dadas ao projeto Calcutá. Há sempre o cuidado especial em escolher um projeto que se enquadre neste lugar e experiência, que mais uma vez saiu na perfeição. Calcutá é um projeto da lisboeta, atualmente sediada no Porto, Teresa Castro que explora ambientes hipnóticos, que nos seduzem e embalam, através da voz, guitarra, harmónio, eletrónicas e, ainda, com o contrabaixo de Maria Amaro que acompanhou Teresa nesta viagem. Mais do que um concerto, esta atuação foi como um exorcismo sónico, que expulsou de todos nós os ruídos ruins que fomos acumulando ao longo do ano e nos preparou para os novos ruídos, sons, melodias, que vamos ouvir nos próximos dois dias. Dali saímos todos mais leves e sonhadores.
Mas não preparados para o que se segue, ali mesmo ao lado, no Palco Museu. Os bbb Hairdryer chegaram de forma serena, mantendo a linha do concerto anterior, mas rápido se percebeu que seria sol de pouca dura e em breve essas suspeitas tornar-se-iam realidade. A voz melodiosa que no início nos foi seduzindo, transformou-se em gritos de revolta e angústia, as guitarras de cores esbatidas e sujas fizeram-se soar, a energia enche o espaço e atrai o público que se vai juntado com curiosidade e interesse. Quase sempre de costas voltadas para o público, numa atitude punk bem marcante, foram apresentando as músicas que figuram nos dois álbuns já editados, com maior destaque para o registo mais recente A Single Mother / A Single Woman / Na Only Child de 2024 e a crueza do seu som, a energia interligada com a raiva por tudo, que bem faz lembrar os anos dourados do grunge, que se dúvidas houvesse, ficaram respondidas quando fizeram uma versão de “Territorial Pissings” dos Nirvana. Por breves momentos vi o Kurt, ali a curtir por entre o público, com um sorriso no rosto e feliz por passados tantos anos, haver bandas com a irreverência e alma dos bbb Hairdryer.
O dia partiu, a noite instalou-se no recinto do Basqueiral e estava na altura de dar início às hostilidades no Palco Tendinha. A privilégio foi dado aos icónicos Black Bombain, trio de Barcelos que navega entre o stoner e o psych rock, aos quais se juntou o saxofonista de jazz Pedro Alves Sousa. Numa primeira análise podemos estranhar, mas a verdade é que depois de ouvir tudo junto a coisa entranha-se. Há mais pontos comuns entre o jazz e o stoner do que inicialmente se julga, a repetição, o improviso, a divagação e groove estão em ambos os estilos e sabendo misturá-los com sabedoria o resultado é o que se ouviu nessa noite: uma atuação irrepreensível, tudo devidamente alinhado, mesmo quando o improviso se impunha e seguia por caminhos nunca antes navegados. Há algum tempo que não ouvia Black Bombain e este concerto mostrou-me que não devia de ficar tanto tempo sem os ouvir. Mestria é uma ótima palavra para definir esta atuação.
Era tempo de regressar ao Placo Museu e descobrir os Avalanche Kaito, projeto que não conhecia e que jamais imaginaria que iriam surpreender da forma que o fizeram. A atuação começou apenas com dois terços deste projeto, Benjamin Chaval na bateria e Nico Gitto na guitarra que vão difundindo os primeiros sons, enquanto isso, vemos um transeunte com uma mochila nas costas, que atravessa o público e só pára em cima do palco. Esse indivíduo era Kaito Winse, compositor e vocalista deste projeto, que assim que assume o comando, a loucura instala-se em frente ao palco. Foi curioso ver o ar de estranheza por parte do público nos primeiros momentos deste concerto, estranheza essa que se tornou em completo delírio, todos a dançarem e a tentarem acompanhar vocalmente Kaito, apesar do dialeto completamente desconhecido. Avalanche Kaito demonstrou, mais uma vez, que a música é mesmo uma linguagem universal, que quando tocada com alma e paixão, todos perceberão a mensagem que está a ser transmitida. A surpresa desta edição do Basqueiral.
O nome que se seguiu é um nome bem conhecido da maior parte de quem por ali estava e era a banda que eu mais queria ver. Tiveram um significativo sucesso em terras britânicas, no início deste século, quando por lá se instalaram e estiveram a um pequeno “click” de se tornarem na “next big thing” a nível mundial. Ainda assim, os seus concertos demolidores e de completo caos deixou marcas profundas em que teve o privilégio de os ver ao vivo. Após duas décadas The Parkinsons continuam ativos, agora sediados em Portugal e, como pudemos comprovar nessa noite, nada mudou, para gáudio de todo nós. A energia, o caos, a atitude punk, a irreverência, tudo continua como no primeiro dia, nas doses perfeitas, sendo servidas numa bandeja de loucura e retribuída de igual forma pelo muito público que ali se encontrava. O melhor concerto desta edição do Basqueiral, que terminou com mais de duas dezenas de fãs em cima do palco, que, entretanto, se tornaram membros dos The Parkinsons que pularam, gritaram e dançaram como se o amanhã não existisse. Poucos perceberam, mas quem terminou na bateria foi Miguel Gomes, baterista dos bbb Hardryer que a meio do caos se apoderou da mesma. Que assombroso momento!
O fecho deste primeiro dia, esteve a cargo do alemão Chris Imler. Nome que desconhecia, mas que conta com mais de uma década de carreira, carreira essa que tem deslumbrado os palcos mais alternativos europeus. Para além das divagações com nuances post-punk, executadas entre loops, eletrónica e bateria, que toca ao vivo e na posição de pé, Chris Imler trouxe ainda a sua personagem que irradia carisma e elegância, tal como as suas composições. Apesar deste primeiro dia já ir longo, ninguém arredou pé até que a última nota fosse tocada.
Primeiro dia de luxo, que venha o próximo.
Dia 02
O segundo dia, e como tem sido habitual, começa com um momento dedicado aos mais novos, o Basqueiral Junior. No interior do Museu de Lamas, estava já tudo preparado para o espetáculo que O Som do Algodão tinha preparado. Os mais pequenos já lá aguardavam, impacientes q.b. e muito curiosos. Assim que a dupla feminina que compõe O Som do Algodão dá início à atuação, os olhares focaram-se na história que foi sendo contada, inspirada na História do Capuchinho Vermelho, mas aqui desenrolada de forma peculiar, entre canções, interpretações, teatro de sombras e muita interação com o público exigente. Uma bela forma de levar a cultura até ao público mais pequeno e quem sabe, daqui a uns anos, um daqueles miúdos ou miúdas estará a atuar num dos palcos no Basqueiral.
Para os mais crescidos, as atuações deste segundo dia começaram no Placo Tendinha, com o concerto da Maria Reis. A cantautora lisboeta já por cá tinha atuado, mais precisamente em 2022, na altura a solo. Entretanto, tem se afirmado como uma das novas vozes do rock independente, editou em 2024 o seu primeiro longa-duração Suspiro… e regressou ao Basqueiral, desta feita, em formato banda. Um belo regresso, com um concerto a condizer com a temperatura do dia, para ouvir de olhos fechados e sorriso na face, sentado no jardim, ou em pé enquanto balouçamos o corpo com movimentos suaves. O começo perfeito deste segundo dia.
Há pouco mais de um ano vi no Porto o projeto que se seguiu, Monch Monch, num concerto que me estranhou, mas que se cravou na minha pele sem nunca a largar, sim tal como uma mordida (monch). Era importante para mim ver de novo este projeto criado pelo paulista Lucas Monch, tal o impacto que tinha causado da primeira vez e para perceber o porquê desse efeito. Para ser franco, esta atuação, que teve lugar no Palco Museu, foi ainda mais marcante, mais demolidora, mais incrível, mais tudo. Monch Monch, que se apresentou em formato banda e que contou com a participação da dupla Baleia Baleia Baleia, protagonizou uma das melhores atuações desta edição do Basqueiral, sempre interativo com o público que retribuiu na mesma medida esse amor, com uma energia contagiante, um desejo de viver aquele momento da melhor forma possível, canções que se agarram e nos devoram, e uma simpatia que apetece abraçar. Por favor, ouçam, ouçam e vejam Monch Monch.
Assim que voltamos ao Palco Tendinha a noite já se instalou em Santa Maria de Lamas e com ela chega a atuação do projeto britânico Famous. Esta banda, editou em outubro de 2024 o seu primeiro disco Party Album, que tem sido muito recebido pela critica britânica e o pretexto para a digressão que se encontram a realizar, a qual passou pelo Basqueiral. Famous está entre o rock e o Psych Rock, com algumas nuances experimentais, com canções fortes, melodias contagiantes, que nos prendem a atenção. Por breves momentos, senti que esta é daquelas bandas de grandes palcos, talvez num grande festival ou mesmo num estádio, para que as suas canções consigam atingir a sua dimensão certa. Talvez tenha sido ilusão, mas vejo-os a dar passos gigantes em breve. Para quem ali esteve, teve o privilégio de os ver ao vivo antes da explosão. Quem sabe?
Voltamos ao Palco Museu para assistir à atuação mais fora-da-caixa desta edição do Basqueiral. As responsáveis por esse belíssimo momento intitulam-se Mermaid Chunky, chegam da Grã-Bretanha e foram convidadas em 2022 a juntarem-se ao catálogo da DFA Records, editora do lendário James Murphy dos LCD Soundsystem. Isto apenas para demonstrar o impacto que esta dupla tem tido nos últimos anos. E não é para menos, porque apresentam um espetáculo bonito, ousado, onde a cada instante aparece algo que nos vai surpreender. Criam música que percorre ambientes folk e experimental, de diversas camadas que nos levam a viajar por mundos desconhecidos. A panóplia de instrumentos é também ela deveras interessante, já que vai de umas simples teclas, ao saxofone, passando por uma dentadura, só para dar alguns exemplos. Sem dúvida, uma atuação a rever.
A noite já ia longa, estramos oficialmente no dia seguinte e é a altura certa para fechar o Palco Tendinha desta edição. Se é para fechar, que seja em grande, e quem melhor para o fazer que um dos grandes nomes da música feita em terras lusas? Ou seja, nada mais nada menos que The Legendary Tigerman. Sobre ele, já não há muito a acrescentar, tal a mestria de tudo aquilo em que ele toca. Como uma amiga me dizia, ele tem o dom do bom gosto, de saber a nota certa que vem a seguir, o acorde ideal, o ritmo perfeito e a forma correta de misturar tudo isto. É o artista na sua plenitude, está tudo lá, grandes canções, enormes atuações, carisma, sedução. Este foi mais um concerto enorme deste senhor e percebeu-se logo no início da atuação, que Tigerman sentia-se muito bem neste cenário idílico do Basqueiral, sentia-se confortável e com prazer em tocar para aquela gente. Uma atuação a roçar a perfeição, como só ele, e a sua banda, sabem fazer.
Landrose já tinha vindo a Santa Maria de Lamas, por altura do Warm-Up do Basqueiral de 2024. Já nessa altura rebentou, literalmente, com tudo, partilhando uma prestação que deixou cicatrizes bem fundas. Não satisfeito, eis que voltou este ano para rebentar com o que ainda tinha deixado de pé. E conseguiu. Foi mais uma daquelas bombas que nos rebentam nas mãos, que nos tiram o ar, e nos deixam em suspenso. A insistência em ter todos em cima dele em palco, leva a que o concerto seja do mais íntimo que pode haver, a determinado momento parece que somos nós que estamos ali a rebentar com todos os tambores da bateria! Até eu, a determinado momento, esqueci-me que fui para ali fotografar e não dançar! É insano, é louco, é caótico! Quando voltas mesmo Landrose?
Depois do Palco Museu ter sido demolido, era altura de fechar esta edição do Basqueiral. Algures iria surgir Zancudo Berraco para a sua prestação e com ela encerrar o festival. Esse algures foi em frente do Palco Museu, ao nível do público, com a sua panóplia de aparelhos eletrónicos que debitaram os últimos sons desta noite. O público foi-se chegando e dançou com Zancudo até que fosse legalmente permitido!
Esta foi a nona edição do Basqueiral e a minha quarta (seguida). Certo que não poderei afirmar que foi a melhor edição de sempre, mas poderei dizer que foi a melhor edição que assisti do Basqueiral! O Basqueiral deixou de ser um festival de um conjunto de pessoas e conseguiu criar uma comunidade que vem ao festival para apreciar boa música, partilhar melhores momentos e criar novas memórias. Não é fácil conseguir o que o Basqueiral já conquistou, é de louvar todo este incrível trabalho. Sublinho o que escrevi no início deste texto: resistir, persistir e prosseguir!
Como disse uma amiga num intervalo entre concertos: o Basqueiral é amor! Longa Vida ao Basqueiral!
Texto e fotografias por Jorge Resende





































































