Desafiámos os nossos escribas a fazer a difícil escolha de selecionar um álbum, uma banda/artista, uma música, um concerto e um artigo escrito no altamont que os tenha marcado, nestes últimos 20 anos. Poderão vê-las no decorrer das próximas semanas, aqui e na nossa página de instagram.
Uma banda / artista: Bill Callahan
É de todo impossível imaginar Bill em tarefas mundanas: de certeza que nunca comprou um gel de duche em promoção, que não faz a mais remota ideia do que seja uma repartição de finanças. Bill está lá em cima, no cume de tudo, contemplando serenamente a trágica condição humana, avistando cá em baixo pequenos pontos, nós, comuns mortais. Bill nunca foi criança, estamos certos. Enquanto os outros miúdos jogavam ao guelas e atiravam pedras às rãs, Bill sentava-se debaixo de uma árvore, pensando no mistério do mundo. E assim continuará, sólido como um penhasco, eterno como uma pedra, enquanto o mundo persistir em girar…
Um álbum: B Fachada – B Fachada (2014)
Uma caldeirada de folclore português, kizomba e electrónica manhosa qual Neil Tennant comendo o Variações no Lontra. Um olhar para a diáspora portuguesa, não naquilo que levámos para o mundo, mas no que dele orgulhosamente trouxemos. Um bálsamo contra os ares pestilentos que correm por aí…
Uma canção: “Nude” – Radiohead
A letra é melancólica e miserabilista – Radiohead, portanto – mas é a música, etérea e puríssima, que arrepia e estremece. A alma libertando-se da torpeza do corpo e ascendendo, luminosa…
Um artigo: Jewellery – Micachu & the Shapes
É pop? É experimental? É Micachu. Melodias viciantes atoladas no mais roufenho lo-fi. A sua voz de maria-rapaz a subir às árvores é despenteada e blasé (ao pé dela a Courtney Barnett parece a Beyoncé). A guitarra tem um som cavo que arranha, como se a madeira tivesse estalado e as cordas fossem de arame enferrujado (há mesmo quem diga que se pode apanhar tétano só de ouvir Jewellery). Tudo é passível de ser um instrumento: aspiradores, garrafas, o que estiver à mão. Ao princípio tudo soa cacofónico mas à terceira audição já estamos a cantarolar as melodias no banho. As canções são breves, esboços maravilhosamente incompletos. A música é louca e engraçada, como um gato verde a voar só porque sim. Num milénio viciado no passado, Jewellery é uma pedra rara e preciosa. Sabe a fresco. Sabe a novo. Sabe bem.
Um concerto: Norberto Lobo || B. Leza (2013)
Estamos junto ao rio, no Cais da Ribeira. O Tejo entra pelo armazém remodelado adentro, trazendo consigo os reflexos dourados das luzes das docas. Nas nossas mesas solitárias, vamos bebericando bebidas fortes, tentando em vão fintar o frio da noite. Norberto chega, senta-se e, sem nos dirigir uma única palavra, começa a tocar. De olhos fechados, os seus dedos sabem encontrar no escuro as notas que procuram. O seu corpo baloiça-se, ondulando ao sabor da música, numa espécie de transe. Nesse momento, já não se encontra no Cais da Ribeira, no último dia do mês de Outubro. É noutro lugar e noutro tempo que habita. E é para lá que ele nos leva…