No último dia de Coura, que esgotou por si só graças a nomes como Manel Cruz, Benjamin Clementine, Ty Segall e Foals também se cantaram os parabéns. E lançaram-se confettis e balões aos céus. Tudo para celebrar em grande o que virá a ser recordada como uma das edições mais bem-sucedidas dos 25 anos de existência do festival.
O último dia do Festival Vodafone Paredes de Coura chegava quase insuportavelmente quente. Os banhistas arrastavam-se para as margens do rio de panelas e pratos na mão para sorver um último humilde almoço, e no ar pairava uma sensação melancólica de saudade prévia. Mas nem isso apagava o espírito dos festivaleiros, dispostos a dar tudo no último dia desta edição do festival courense, e que se dirigiam prontamente ao recinto assim que o relógio dava as seis da tarde, hora de início dos concertos.
Enquanto os Toulouse iam aquecendo o chão do palco secundário com o seu shoegaze à portuguesa, uma outra multidão preparava-se para assistir a uma das promessas mais saborosas de todo o cartaz: um concerto, às 18:30, de nem mais nem menos do que Manel Cruz, figura mítica e fulcral no desenvolvimento da música alternativa em Portugal dos últimos vinte anos, graças à sua colaboração para projetos como Pluto, Foge Foge Bandido e, claro, os Ornatos Violeta. A última vez que o monstro da lírica melancólica e melodia balançante passara pelo festival tinha sido como vocalista dos Ornatos, num concerto de reunião que chamou milhares, em 2012. Agora, voltou ao palco principal, desta vez sozinho mas bem acompanhado de uma banda – bateria, sintetizadores, guitarra e baixo, assim como um enorme ouvido de gesso plantado atrás de si no palco. E de ouvidos abertos e bocas caladas ouviram-no a audiência, ele que abriu as celebrações, depois de uma pequena introdução, com “Cães e Ossos”, música nova no qual acompanha a banda com o bandolim, e vai trocando ao longo do concerto por ukeleles, guitarras e sintetizadores. Neste concerto, inteiramente dedicado a canções novas que dão corpo à sua poesia simultaneamente sombria (“O diabo vai-me ajudar a reconstruir a cidade”) e caricaturesca (“Troco a missa por uma chamuça”). Aqueles que chegaram ao recinto com pressa de voltar a ouvir Ornatos pouca sorte tiveram, mas Manel Cruz não levou a mal: às tantas, lendo um cartaz que um moço na primeira fila levantava nos ares (“Toca Ornatos, ó boi!”), solta uma gargalhada bem-disposta e afirma: “és do Porto, tu!”. Claramente no seu ambiente no anfiteatro natural de Coura, Manel Cruz sorri um sorriso farto ao longo de todo o concerto, estudando as reações entusiasmadas do público a temas como o melodioso “Beija Flor” ou o caótico “Aldeia do Maluco”, desfaz-se em agradecimentos e elogios à plateia cheia, ainda dá tempo para cantar os parabéns ao festival aniversariante, fumar um ou outro cigarro, e, de repente, já ninguém se lembra se quer ouvir Ornatos ou não. “Ainda temos tempo para mais uma?” E de facto tinham, e os primeiros acordes de “Borboleta” – tema do projeto Foge Foge Bandido – acaba por ser o mais bem recebido pelo público. A familiaridade é uma coisa tramada, mas Manel Cruz conseguiu cumprir a difícil tarefa de lhe fazer a rasteira e dar à audiência um concerto inesperado e surpreendente.

Os californianos Foxygen entram em palco pelas 19:40, exibindo uma formação extensa, completa com uma pequena secção de sopros que prometem fazer a audiência levantar o pé do chão. Mas, apesar de temas como “San Francisco”, do álbum de 2013 We Are the 21st Century Ambassadors of Peace & Magic ou o mais recente single “Follow The Leader” soarem sem dificuldade ao longo do final de tarde soalheiro, foi a atitude do excêntrico vocalista, Sam France, que acabou por ficar atravessada na garganta de alguns. Quando surge em palco pela primeira vez, camisa branca desabotoada, cabelo desgrenhado, óculos escuros e cara mergulhada em brilhantina, a audiência começa por aplaudir e até se ri de algumas piadas que o músico vai mandando. Mas depois, começa a fartar e até a embaraçar. Muito como a trajetória mais recente da banda, que depois de assolados com problemas pessoais e profissionais, decidiram começar da estaca zero com este Hang, o seu quarto álbum. Mas para France, é o centésimo, e a sua banda (ou será ele?) merece um lugar no pódio juntamente com os Rolling Stones, os Beatles, os Fleetwood Mac, e outras demais inspirações. France vai balbuciando elogios a si próprio, tentando comédia e por vezes enfiando o pé direitinho na argola (“Where are we? Are we in Spain?” inquire, a certa altura), deixando a audiência sem nada para fazer senão bater umas palmas entre risos de nervoso e implorar para que a música comece – não porque é tão boa como é na cabeça de France, mas para não ter de ouvir o seu vocalista a fingir-se um Mick Jagger de marca branca e sem metade do talento ou carisma.

Aqueles que se iam fartando da barraca ensaiada de Foxygen também não ficavam de mãos a abanar: por volta das 20:30 era a vez de Alex Cameron, ele próprio descoberto em Paris pela banda que ia acabando o seu concerto no palco principal, ocupar o palco secundário.
Cameron, que foi chamando à atenção do mesmo género de público depois de ser levado pelo mundo com Mac DeMarco, Kevin Morby ou Unknown Mortal Orchestra, contrasta claramente em atitude com os seus conterrâneos Foxygen: a excentricidade de France é aqui substituída pelas palavras humildes e doces de agradecimento de Cameron, acompanhado em palco pelo saxofone veludoso de Roy Molloy, entoando na sua voz de tenor temas do conceituado álbum de 2013, Jumping the Shark, como “Take Care Of Business”, que acaba por dedicar a todas as mulheres fortes (as fãs irrompem em urros e palmas, claro) assim como o seu fresquíssimo novo trabalho Forced Witness. Um concerto honesto e simples que conquistou mais pela simpatia do que pela melodia.
Ainda nem as nove surgiam no ecrã do telemóvel e o mar de gente ia inundando as colinas de Coura arrastando tudo atrás de si. Afinal de contas, um dos principais causadores da corrida às bilheteiras pelo festival e por este dia em particular (que também esgotara) preparava-se para entrar em palco. Vinte minutos depois, silêncio, que se vai cantar o fado: entra em palco Benjamin Clementine, poeta, compositor, pianista e cantor britânico que, ganhando um seguimento de culto quando tocava sozinho e esfomeado nas ruas de Paris, acabou por regressar à sua ilha e edita At Least For Now, álbum que lhe vale a adoração do público e da crítica e que lhe permite continuar e editar, em Outubro deste ano, I Tell A Fly. É esta a história que trouxe Clementine até nós, e o que nos trouxe até Clementine foi, acima de tudo, aquela voz: uma voz rica e sumarenta que ecoa através das colinas e provoca arrepios mesmo daqueles que observam do alto do monte, de mãos cruzadas à espera de serem convencidos. Clementine não os permite não o serem, acompanhado em palco por um majestoso piano de cauda, uma bateria, um baixo, e um coro vestido de branco. Sem grandes complicações, ensina ao público as letras (que este já sabe de cor e salteado) e obriga todo o anfiteatro natural a entoar com ele temas como os novíssimos “God Save The Jungle” ou o single “The Phantom of Allepoville”. A meio do concerto, o público, extasiado, grita em uníssumo: “Benjamin! Benjamin! Benjamin!” Este responde, ainda meio surpreso e com um sorriso tímido: “Portugal! Portugal! Portugal!” Em “Condolence”, Benjamin transforma-se em xamã e o público adorador recebe-o de braços no ar; “quero que fechem os olhos, olhem os vosso diabos de frente e lhes cantem” – e começa a entoar – “I’m sending my condolences to fear / I’m sending my condolences to insecurities”. “Não temos de ter medo. Eu não tenho medo e vocês também não”, diz numa voz segura que nos faz acreditar nas suas palavras, tão relevantes no atual clima político mundial, e o público irrompe em aplausos e assobios naquele que foi um dos momentos mais bonitos de todo o festival. É “Cornerstone” que arranca o maior número de aplausos, que pensávamos impossível de superar num dos concertos com melhor audiência de todo o festival, e quando Benjamin abandona o palco e deixa a pairar no ar o seu soul arrojado a lembrar um filho perdido de Nina Simone, já não temos medo.

Vencidos os mares de gente que enchiam o anfiteatro natural de Paredes de Coura depois da atuação de Benjamin Clementine, chegámos ao palco Vodafone FM onde já atuavam os Lightning Bolt. A banda de Brian Chippendale e Brian Gibson não descansou durante quase uma hora, oferecendo torrentes contínuas de um som agressivo que deu azo a um dos maiores e mais brutais mosh pits desta edição do Vodafone Paredes de Coura. Para contagiar o público com o seu noise rock, o duo americano não precisou de nada além de um baixo cheio de distorção a rugir decibéis e uma bateria incansável e sempre muito furiosa. Por trás de uma máscara, Chippendale, na bateria e na voz, ia falando com o público, a agradecer a sua energia e presença ali. Além do momento de puro caos e anarquia, induzido pela violência de grande parte das músicas, houve outros de pura experimentação; nestes, ouvimos o som do baixo a ser manipulado por delays e pitch shifers ou ainda o uso de loops de feedback abstratos, elementos que ajudaram a tornar este concerto mais especial e bastante diferente daquilo que se ouviu ao longo dos restantes dias de festival. Já perto do fim, fomos chamados pelas guitarras de Ty Segall ao palco principal, mas o enorme sucesso e qualidade do concerto dos Lightning Bolt não deixaram de sobressair.
Por incrível que pareça, Ty Segall, figura tão frequente um pouco por todos os palcos de festivais de música alternativa do país que chega a fazer parte da mobília, nunca tinha passado pelos palcos de Paredes em nome próprio. Aceite o convite, sobe ao palco principal onde um bando de gente batalha contra as multidões que abandonam o recinto, saciados com o intenso concerto de Benjamin Clementine, sedentos de rock. E foi rock que Segall deu: pouca conversa, muita energia, sem espaço para grandes invenções ou iniciativas, apenas puro rufar de bateria a estalar no peito e riffs a fazer abanar a cabeça. Os mais corajosos corriam colina abaixo para se juntarem às primeiras filas e ao inevitável mosh pit, e corpos voavam pelos ares ao sabor do trânsito intenso de crowdsurf, num concerto de um alinhamento respeitável, que deu tempo para uma exploração de temas de trabalhos mais recentes, como Emotional Mugger, de 2016, mas também de canções que talvez os mais jovens nem se recordem: para a alegria dos fãs de longa data, foi “Girlfriend”, do álbum Melted, de 2010, um dos pontos altos do concerto, com a banda a gracejar: “não tocamos esta música há anos, e nunca, nunca, mas nunca mais a voltaremos a tocar!” E o público que vibrou ao longo de uma hora de concerto nas primeiras filas implorou: voltem, sempre.

Já passava da meia-noite, e pouco faltava para o maior concerto de todo o festival: os escoceses Foals, cujo indie rock de álbuns como Total Life Forever (2010), Holy Fire (2013) e o mais recente What Went Down (2015) agarraram de tal maneira o coração de fãs de música que, junto da entrada do recinto, assistia-se a um autêntico cardume de devotos que largavam em fuga em direção ao cheiíssimo palco principal. A banda de Oxford, liderada por Yannis Phillipakis, entra em palco serena para resposta de milhares de aplausos e berros de quem esperava o seu regresso a palcos portugueses desde a passagem por Algés no ano passado, nos palcos do NOS Alive. Em Coura, emoldurados pelas árvores frondosas, não desiludiram com um concerto que se prolongou muito para além da hora esperada, na qual todos os acordes que a guitarra de Phillipakis cantava chegavam para deixar a audiência louca de antecipação. Os maiores sucessos, como o single “My Number” ou o estrondoso “Inhaler”, deixaram o pó no chão visível no ar, de tanto que levaram os pés da audiência a chocar contra ele. Claramente agradecidos, foram muitos os “obrigadas” que se foram sucedendo ao longo do concerto, que, pela sua energia imparável, acabou por ser, como já se esperava, um dos pontos altos do dia e de todo o festival, capaz de encher o coração até dos (poucos) que não se declaravam fãs antes do grupo entrar em palco. Banda saída do palco ao som de uma maré de aplausos, ainda houve tempo para mais um bonito parabéns a você, pontuado pela festa de confettis e balões que caíram dos céus sobre a plateia surpresa e encantada. Não é todos os dias que se fecha vinte e cinco anos de cartaz desta maneira.

Para quem ainda resistia à derradeira despedida de Coura, o palco secundário preparava-se para receber Throes + The Shine: o casamento musical entre Angola e Portugal, que funde os ritmos quentes do kuduro com a energia calculada do rock da guitarra elétrica, prometia, aliás, exigia, festa da pesada: Diron Shine, incansável vocalista, dançarino e entertainer, perguntava vez e vez: “Estão prontos para dançar?!” Paredes mordeu o isco e dançou sem cessar durante um concerto que durou mais de uma hora, marcado pelo vigor ilimitado tanto em palco como em chão, enquanto balões voavam pelos ares e o público berrava em resposta às provocações dos músicos (“Não estou a ouvir barulho nenhum…”). E dançar pela noite fora revelou-se o objetivo do último dia do palco After Hours, sendo que à banda de fusão se seguiu o DJ Nuno Lopes, repetente na tarefa hercúlea de meter os corpos exaustos a mexer, tarefa que cumpriu até ao sol raiar e os festivaleiros começarem a pensar na hora de abandonar o habitat natural da música.
Mais uma vez, o Festival Vodafone Paredes de Coura trouxe-nos quatro dias imparáveis, com música e músicos de todos os cantos do planeta a fazer-nos dançar, chorar, sentir que aquela semana não podia durar para sempre. Nada dura para sempre mas no próximo ano há mais, e já será possível marcar no calendário: 15, 16, 17 e 18 de agosto os amantes de música têm encontro marcado com a praia fluvial do Taboão. Venham mais 25.
Texto: Beatriz Negreiros || Fotografia: Francisco Fidalgo