
Ana Baptista
Há uma sensação inexplicável quando se chega à rampa de entrada do Primavera Sound de Barcelona. É um misto de ansiedade e de excitação. Ir ao Primavera tornou-se uma inevitabilidade e uma experiência de vida que – ainda bem – nunca é igual. É cansativo sim, porque são quase 12 horas de música durante três dias seguidos, com oito palcos, alguns deles a 15/20 minutos de distância um do outro. Mas raios! Andar a correr para ver concertos não é mau. É bom e só cansa as pernas.
Pior é ter de fazer escolhas. Há muitos concertos à mesma hora e não há atrasos nem encores – sempre disse que se pode acertar o relógio pelos concertos – e portanto há que fazer um guião e ter sangue frio suficiente para dizer que não a determinada banda. Houve, por isso, muita coisa que não vi, como Blur , James Blake ou mesmo os nossos PAUS. Mas vi Tame Impala, aliás, foi com eles que dei o pontapé de saída do Primavera deste ano.
São um bocado parados e tímidos, mas o importante é que tiveram um alinhamento consistente e equilibrado. Não gastaram os trunfos todos e não se limitaram a tocar os temas tal e qual como estão no álbum. Foram mais ambiciosos, principalmente em Elephant, o primeiro single do novo álbum, e em Half Full Glass of Wine, o single do primeiro álbum que fechou a atuação da melhor forma possível. Ajudou ainda o ecrã gigante com as típicas imagens psicadélicas, cheias de cores e espirais repetitivas.
Portanto, o festival começava bem, mas de Primavera tinha pouco porque estava um frio e um vento inédito para esta altura do ano em Barcelona. Frio e vento que perdurou nos três dias seguintes.
Depois de Tame Impala, entretanto já de noite, ouviram-se partes de Dinossaur Jr, Deerhunter e de Do Say Make Think (estava a ser o melhor dos três), mas o que prometia era mesmo Grizzly Bear. Não sou a fã número um e até conheço mal os álbuns, mas raios, deram um dos melhores concertos do festival. Foram simpáticos, comunicativos e muito mais ritmados que em disco, e souberam dosear na perfeição os temas mais intimistas com os mais mexidos e com os “hits”. É daqueles concertos que nos faz sorrir e nos faz sentir bem e que dá vontade de ir a correr ouvir os discos todos. E aquelas lâmpadas/lanternas suspensas que se mexiam com a música… foi o enquadramento perfeito.
A minha lista dispensou os Phoenix – porque não gosto – mas terminava com Animal Colective, que tocaram as 3h10 da manhã e cada vez que os vejo vivo crescem ainda mais. O engraçado é que gosto mais deles ao vivo que em disco. A percussão soa melhor em concerto, é mais forte e densa, e parece ser o elemento que cola todos os outros instrumentos e cria uma harmonia dançável. O primeiro dia acabou assim, com o corpinho a abanar ao som de Animal Colective, já quase as 4h00 da manhã e ainda com bandas a tocar noutros palcos.
O segundo dia começou da mesma forma, a dançar ao som de Django Django. Se forem ao Alive, não percam que vale a pena. São conversadores e divertidos e apesar de parecerem mais disco ou até techno em alguns temas, brincavam muito com a percussão e com as influências tribais. Ainda era de dia quando entraram em palco e parecia que estávamos numa festa de praia. A seguir, uma corridinha até às Breeders que estavam a tocar o “Last Splash” na integra.
Para quem não se lembra, o Cannonbal – o hit que todos reconhecem mesmo que não saibam quem o toca – é o primeiro tema do álbum e por isso convém não chegar atrasado. O pior é que daí para a frente o álbum fica mais parado e por isso também a atuação ficou. O que vale é que o álbum é curto e as manas Kelley Kim Deal (dos Pixies) ainda tocaram mais umas canções de outros álbuns. Não foi nada de especial, mas serviu para recordar os 90. Aliás, era isso que se pretendia, creio.
Depois recordaram-se os 80 com os Jesus and Mary Chain, que estão longe de ser interessantes ao vivo, mas quando têm dois dos meus temas preferidos de sempre – Craking Up e Just Like Honey – não dá para fugir do óbvio.
Menos óbvio foi trocar o James Blake pelos Daughter, a mais recente sensação indie que ando a ouvir em repeat nos últimos tempos. Tocaram num dos palcos mais pequenos do festival, mas estava cheio. Aliás, em quatro Primaveras, este foi de longe o mais concorrido – 170 mil pessoas nos quatro dias (notem que o festival começa na quarta em várias salas pequenas e depois segue três dias para o Fórum, junto ao mar). Mas adiante: os Daughter não são brilhantes, não são geniais, mas são agradáveis, têm melodias fáceis de ouvir e algo românticas (no conceito) e deram um concerto tão sincero e tão bem tocado – o som estava óptimo – que foi difícil não adorar.
Mas o segundo dia não era deles. Para mim, era dos Goat (quem?). A banda sueca mistura rock psicadélico com música tribal e celta, rituais voodoo e sei lá o que mais. Um concerto destes senhores é um murro no estômago, é uma dose de rock bem delineado entre a distorção e o improviso, é um libertador dos problemas da vida. Ajuda também as imagens de florestas e ovelhas no ecrã e o aparato cénico. São sete em cima do palco, todos usam máscaras tipo Carnaval de Veneza, mas eles estão de fato de carrasco e túnicas, e as duas vocalistas misturam o hippie e o pijama, mas sempre endiabradas e imparáveis nas suas danças desconexas. Nada mais pareceu estranho a partir daí, ou melhor, os The Knife foram estranhos porque mais do que um concerto deram uma performance de dança. Mais parecia o Cirque de Soleil em ácidos.
E chegamos ao terceiro dia – o meu último. Podia falar de muita coisa, mas não vale a pena. Sim, os Hot Chip estiveram muito bem. Os Crystal Castles nem por isso (não vale a pena, não os suporto!). E os Liars estiverem mais ou menos. Este dia foi de Dead Can Dance e de Nick Cave.
Estava com receio de ver Dead Can Dance ao ar livre, com vento e ainda de dia, mas tudo isso ficou para trás. O som estava limpo, intocável. As vozes de Lisa Gerrard e de Brendan Perry – e que vozes – estavam tão impecáveis que não se ouvia um pio naquele concerto. O público estava emerso na mistura de estilos que são os Dead Can Dance, entre a música erudita, clássica, tribal, indiana, celta, árabe, electrónica e até pop. E entretanto escureceu, o jogo de luzes ganhou dimensão, e foi um concerto fenomenal, com um alinhamento centrado em álbuns mais recentes, mas com pérolas antigas, como uma versão menos instrumental do Song To The Siren, The Ubiquitous Mr. Lovegrove ou Black Sun.
Por fim, o Nick Cave. Já esperava que fosse bom, mas não tão bom. Cada tema tocado foi elevado ao seu expoente máximo – na voz, nos instrumentos, na pose, no bravato, na sensualidade e na sexualidade. Uma canção não era apenas uma canção. Era todo um exercício de entrega e de intensidade de cortar a respiração (por várias vezes, Nick Cave cantou literalmente em cima do público). Dos três concerto que vi dele, este foi o melhor, mesmo sem ter tocado tudo o queria ouvir. O homem – e a banda – estavam inspirado. Só foi pena o concerto ter sido tão curto, apenas uma hora, porque até o alinhamento foi inimaginável de tão bom que foi: Mercy Seat, Stagger Lee, Weeping Song, For Her To Eternity… ou os novos e lindíssimos Push The Sky Way, Jubilee Street, You Know Who U R. Desculpem os elogios e todo este sentimento, mas sou fã.

Pedro Primo Figueiredo
A Ana Baptista sintetiza com brilhante eficácia no seu texto o sentimento extra-concertos que preside ao Primavera Sound catalão: a ânsia, o querer, os palcos, a correria, as pernas – ou a falta delas, na maior parte dos casos. Foi o meu quarto Primavera seguidinho em Barcelona. Todos guardam memórias e momentos únicos. Este também, embora aqui e ali tenha ficado a sensação de estar “apenas” num óptimo festival, o que não é sensação comum – aqui estamos na meca dos festivais de música alternativa, um género de Benfica de há um mês atrás, a varrer tudo e todos (que saudades desse tempo e desse acreditar…).
As escolhas. Aí está um dos trunfos do Primavera Sound. Lendo o texto da Ana apercebo-me de que quase estivemos em dois festivais diferentes, tais foram as nossas assimetrias musicais. No primeiro dia coincidimos em Tame Impala (que achei maravilhosos e perfeitos), Grizzly Bear (que vi pouco mas são alta bandão) e Animal Collective (sempre bons, mesmo que num horário tardio e com um frio desumado para Maio em Barcelona).
Vi Phoenix, que me surpreendem por serem já uma banda tão grande e perfeitamente capaz de suportar o estatuto de cabeça de cartaz. Nem tudo neles é óptimo, mas quando acertam, criam canções pop fantásticas. Ao vivo, são melhores ainda e acertam num alinhamento que destaca pouco o recente (e meio desinspirado “Bakrupt!) e joga tudo no registo best of. Foi um dois concertos que vi que teve direito a encore – o outro foi Blur, o que diz tudo sobre quem são já os Phoenix em 2013.
Antes havia visto os Postal Service a espalhar magia com o passar para palco de “Give Up”, um dos álbuns indie essenciais da década passada. Foi um concerto de memórias e de beleza. Foi provavelmente o concerto mais doce e sorridente do festival.
Savages, muita classe, ainda para mais sendo uma banda nova nestas lides. Noutros palcos, Hot Snakes, Metz e Bob Mould davam electricidade e punk a quem disso clamava. Simian Mobile Disco, Four Tet e Jessie Ware, entre outros, deram também concertos de relevo, diz quem por lá passou (não foi o caso deste que vos escreve).
O dia seguinte tinha os Blur como foco – e merecidamente: deram um concerto perfeito, inatacável, refinado alinhamento, óptima química entre banda, energia e saudável revivalismo de canções como “Popscene”, “Beetlebum” ou “Girls & Boys” (esta logo a abrir). “The Universal” e “Song 2”, em encore, juntam o melhor dos dois mundos do grupo: a sedução e emotividade com o fulgor rock. Foi do caraças.
Um pouco antes vi aquele que viria a ser o meu maior momento deste Primavera Sound: James Blake. Actual, intrigante, misterioso, envolvente, hipnótico, sedutor, muitos são os adjectivos que poderia aqui inserir. Ninguém faz música assim hoje em dia, tão orgânica e despida mesmo que quase sempre assente em maquinaria. E a voz, pá? Não é para todos, bem sei, mas a mim esmaga-me. Em concerto, tudo melhor por comparação com a última vez que o havia visto, há dois anos: mais noção de palco, melhores canções, sagaz balanço entre intimismo e voz de seda e electrónica dançante para multidões. É um género de trovador do século XXI que pega em sintetizadores em vez de violas.
E os PAUS, pá? Muito respeito e orgulho. Segundo ano consecutivo no festival da Catalunha, segunda demonstração de classe e pujança. Não sou muito dado a machonices de orgulho lusitano, mas foi algo inevitável sentir um friozinho na espinha (saboroso) ao ver os quatro de Lisboa a agarrar milhares como o fizeram naquele início de noite. Sim senhora.
Sobre sábado, não vou falar de Nick Cave, que nunca tinha visto e que me deixou esmagado – a Ana já fala nele com toda a propriedade nas linhas acima. Falo em My Bloody Valentine, que me soube a pouco – “Loveless” é um dos discos da minha vida e este concerto não o foi. Talvez as expectativas fossem elevadas demais, talvez o som não estivesse perfeito, talvez isso fosse intencional, talvez o cansaço já não permitisse grande encaixe, talvez tanta coisa. O certo é que não bateu tanto como eu queria. Pena.
Melody’s Echo Chamber é a banda liderada pela namorada de Kevin Parker, dos Tame Impala, e soam, conseguem adivinhar?, a um género de Tame Impala com voz feminina. São bons, portanto.
Mac DeMarco e Thee Oh Sees a dar tudo, Wu-Tang Clan a fazer a festa e a trazer hip-hop de qualidade a um festival que pouco teve desse género. Houve ainda The Sea and Cake, Merchandise, King Tuff e o final da praxe: DJ Coco a dar tudo em cima do palco Ray Ban, milhares a dançar em frente, umas largas dezenas em cima do próprio palco, e um até já a Barcelona que demorará 12 meses a concretizar-se.