Na última noite do festival, Rosalía confirmou todas as credenciais que faziam dela cabeça de cartaz, mas o trono estaria reservado para Jorge Ben Jor e Erykah Badu.
E assim se passaram três dias! Um festival com alguns percalços pelo caminho, mas também com muitos e bons concertos. Também nem sempre o tempo ajudou, mas isso parece que já vem fazendo parte do NOS Primavera Sound. Feitas as contas, o proveito foi bom e agora há que esperar pelo próximo, com os míticos Pavement no horizonte. Por nós, poderia ser já amanhã.
Mas puxemos o filme atrás e regressemos a ontem. Ao mesmo tempo (17h) e em palcos bem distantes, a lusofonia ganhou forma e espaço com a nossa Lena d’Água e Primeira Dama e também com os nossos (de coração) O Terno, no palco SEAT. Comecemos pelo trio vindo do país irmão. Já sabíamos que o último disco da banda de Tim Bernardes corre o bom risco de ser um dos melhores de 2019, por isso eram muito elevadas as expectativas em torno dos Terno. O que dizer sobre o concerto de ontem que possa ser descrito sem uso a adjetivações superlativas? Tarefa impossível, uma vez que Tim Bernardes e companhia são absolutamente inatacáveis, por isso pouco mais haverá a referir. A poucas horas de Jorge Ben Jor, O Terno abriu caminho para o samba-soul do mestre alquimista. Mesmo que Tim Bernardes cante dizendo que lhe “parece tudo errado” nós garantimos que está “tudo certo”. O último dia não poderia ter começado de melhor maneira.

Já no palco Super Bock, o século vinte e o século vinte e um encontravam-se em palco para um casamento imaculado entre Lena D’Água, ícone do pop-rock português da década de setenta, oitenta e mais além, e Primeira Dama, nome pelo qual é mais conhecido Manuel Lourenço, cantor, teclista e compositor querido da última vaga do indie lisboeta. Juntos, saltitaram entre canções de um e de outro, destacando-se os saudosos “No Fundo dos Teus Olhos d’Água” ou “Nuclear Não, Obrigado”, bem cantados e acompanhados por Primeira Dama e a sua Banda Xita.
“There’s something really cool playing”, gracejou Frances Quinlan, ao ouvir a música selvagem de Viagra Boys a soar ao fundo, no palco SEAT, a meio do seu concerto no palco principal do festival. Mas pediu-nos para ficar, e, com uma voz daquelas, não conseguimos desobedecer. A canção destinada a sublinhar a mensagem foi “Well-dressed”, tema retirado do celebrado “Painted Shut”, que já data de 2015. O indie rock volta a triunfar, num festival que já contou com concertos memoráveis de nomes como Built to Spill. E o sabor da vitória encontra-se localizado nas cordas vocais animalescas de Quinlan, que ruge e brande cada palavra com a força de quem julga ser a última. Com destaque para “Bark Your Head Off, Dog”, lançado no ano passado através da Saddle Creek, os Hop Along fizeram-nos voltar a acreditar na força de uma boa canção de bateria, baixo, guitarra e voz.

Como o próprio nome indica, os Viagra Boys vieram cheios de pica e prontos a disparar rajadas de sons de guitarra e viola baixo. Alguns temas bem melódicos, embora sempre envoltos em altas estridências de rock. Vindos de Estocolmo, Sebastian Murphy e a sua banda fizeram um longo caminho até ao Parque da Cidade. Nós ouvimo-los durante meia hora e fomos andando até ao outro extremo do recinto, onde a menina Lucy Dacus aguardava a hora de entrar no Palco com nome de cerveja fresquinha.
Historian é um belo disco, assim como já era o primeiro álbum da americana Lucy Dacus. As histórias que canta parecem saídas de um qualquer compêndio literário sobre dor, traição, amor e tragédias íntimas. Em palco, a timidez é alguma e fica-lhe a matar. Mas a entrada de rompante de “Addictions” e a boa reação do público terá contribuído para que se sentisse mais tranquila. Com a cover de “La Vie en Rose” cantada num sofrível francês a meias com o seu inglês natal, o concerto de Lucy Dacus foi ganhando corpo e elegância. A seguir pediu desculpas pelos seus USA e seguiu cantando os seus temas doces e amargos ao mesmo tempo. “You & Yours” veio a propósito desse desencanto pelo seu país, e por isso cantou repetidas vezes o verso “this ain’t my home anymore”. Brindou-nos com a nova e bonita “My Mother and I” num dos momentos mais intimistas de todo o concerto. Depois veio o rock mais enérgico de “I Don’t Wanna Be Funny Anymore” para de seguida tocar o hino que é “Night Shift”. Foi a apoteose!
Pouco depois das sete da tarde, o tempo arrefecia e eram muitos aqueles que se encolhiam debaixo dos casacos nos bancos laterais do lado SEAT para espreitar um dos mais aliciantes novos nomes do indie rock americano. Estreados apenas há três anos atrás com Masterpiece, Adrianne Lenker e companhia já conquistaram o mundo com o seu mais recente U.F.OF., e a sua passagem pelo NOS Primavera Sound serviu mais de confirmação segura do que pedido de autorização. Sem medo de pintar fora das linhas, tanto se entregam ao doce folk rock que nos faz recordar com saudade uns Mazzy Star, como se perdem na guitarra elétrica tocada ao desafio minutos e minutos a fim. Big Thief podem já ter conquistado o mundo inteiro: mas, ao fim de uma hora de concerto, conquistaram-nos a nós também.

Se houve momento verdadeiramente único neste NOS Primavera Sound (sim, ok, sabemos que tudo é discutível, mas que importa isso quando falamos sobre um Deus da MPB?) ele foi o concerto de Jorge Ben Jor. Esperámos uma vida inteira para isto! A entrada deu-se com “Jorge de Capadócia” e depois o bom carioca foi por aí afora desfiando hits uns atrás dos outros. A saber, embora apenas alguns: “A Banda do Zé Pretinho”, “Minha Menina”, “Magnólia”, “Ive Brussel”, “Zumbi”, “Bebete Vãobora”, “Take It Easy My Brother Charles”, “País Tropical”, “Spyro Gyra”, “Umbabarauma”, entre outros ainda. O concerto foi uma imensa festa coletiva subindo pelas áleas verdes do recinto. Comunhão absoluta e milhares de vozes a cantar o que Jorge Ben Jor cantava e a dançar ao som do seu samba-soul-esquema-novo que fez vibrar o Parque da Cidade inteiro! E a nós também, sobretudo por dentro, pelas memórias discográficas que temos dele que quase não cabem numa vida inteira. Os que presenciaram o concerto de Jorge Ben Jor talvez não tenham a noção exata de quem ele é e do que viram e ouviram. Menos ainda do que representa no largo e povoado universo da música popular brasileira. Jorge Ben Jor é um deus do mais reservado Olimpo que ontem desceu à terra. Volta sempre, my brother Jorge. Salve a tua simpatia, “meu irmão de cor”!
Chegara a vez de mais um histórico momento, desta vez no Palco Seat. Os “velhinhos” Guided by Voices estiveram pujantes no seu indie-rock-whatever the style they have that feels so fuckin’ good. Foram ótimos e fizeram uso da sua muito extensa discografia recuando a tempos bem distantes. No entanto, fomos reconhecendo canções cujos títulos se foram apagando das nossas cabeças. Mas “I Am a Scientist” não nos escapou, e não devemos errar se dissermos que deverá ter nascido no início dos anos 90. Curioso o facto de Robert Pollard, o único sobrevivente do elenco original (julgamos nós) ter de explicar ao público que nos Estados Unidos da América serem uma mítica banda de rock, esclarecendo que “you might don’t know that”. Mais um excelente concerto de rock numa noite algo ventosa e fria. Mas como o rock aquece, esteve tudo bem.

Nem o vento que já corria pelo Parque da Cidade podia abalar as expetativas astronómicas que muitos dos visitantes (principalmente os do país vizinho) colocavam sobre Rosalía, prevista a atuar no palco NOS pouco depois das dez horas da noite. Muitos desistiram de completar a progressivamente mais hercúlea tarefa de meter algo ao estômago para guardar lugar cativo para assistir ao concerto da maior sensação espanhola do ano passado, e das mais mirambolantes também: com El Mal Querer, como que de um dia para outro, a cantora nascida na Catalunha tornou-se um fenómeno que tanto agita o público com sucessos transversais com nomes como J Balvin, como inspira a crítica a desfazer-se em elogios à sua união arriscada entre flamenco e pop. Com a gigante “Pienso En Tu Mirá”, Rosalía cumprimenta o Porto. E, mesmo entre hordes de dançarinas, sob as texturas cuidadosamente selecionadas por El Guincho, acompanhada de um coro que replica as típicas palmas tradicionais espanholas encontradas ao longo de quase todo o seu trabalho, Rosalía comanda toda a atenção para si: quer seja pela sua voz – tão ou mais convicta do que na versão em disco, que se entrega da mesma forma a “Catalina” (recordações de uma estética bem mais crua) como a “De Aquí No Sales” – como pela sua presença eletrificante, enquanto se passeia pelo palco com faíscas nos olhos. No final, só restava ouvir “Malamente”, sucesso monstruoso e internacional que fez até os mais embirrentos gritarem um ou outro “Trá Trá”. Ao contrário do seu parceiro na língua espanhola que ocupou o mesmo palco na noite anterior, Rosalía esmerou-se para colocar em cena um excelente espetáculo, quando nem precisava.
Kate Tempest é uma rapariga de múltiplos talentos. Embrenhada em narrativas torrenciais, o seu spoken word percorre as temáticas prementes da atualidade, mas também a revelam no seu íntimo. O ponto que une essas duas vertentes é muito bem conseguido e não foi de estranhar que enquanto Rosalía se rebolava “malamente” para deleite de milhares, eram também muitos os que foram escutar as canções de combate da jovem britânica. Pela sua boca, o mundo parece um caos traçado a lápis de cinza. É grande o desencanto, e é quando ele se instala que Kate Tempest se torna incendiária. Que ninguém a apague.
Depois do sotaque dançante de Rosalia, os Low atuaram mesmo ao lado. Trouxeram um bocadinho do seu particular caos feito de negrume e frieza. O seu slowcore tem algum encanto, e o disco recente é, dentro do género, uma obra de inegável valor. É spooky o som que produzem. Music to play in the dark mas com alguma luz ao fundo do túnel sonoro de Alan Sparhawk e companhia. Ao fim de algum tempo e com o silêncio a que os Low obrigam (amaldiçoados aqueles que não se calam um momento durante os concertos!) os temas entranham-se devagarinho, colando-se aos ouvidos, depois à cabeça e por lá ficam numa dança muito própria até por fim se dissiparem. O trio de Minnesota esteve bem, muito bem até. Uma autêntica epifania de estridências e ruídos fugidios e fatais.

E por fim… O que podemos dizer acerca do maior concerto do NOS Primavera Sound? Erykah Badu foi um nome que, desde a sua confirmação, surpreendeu e entusiasmou, e quando os cinco minutos de atraso para a atuação combinada no palco NOS se transformaram em dez, vinte, trinta e trinta e cinco, os assobios e apupos soavam genuinamente magoados e aflitos. Até que enfim, quase quarenta minutos depois da hora prevista, surge já de madrugada em palco a extensa banda que compõe o círculo Badu, e, depois, a criatura mitológica que quase que acreditámos que não vinha. “Thank you for waiting”, disse ao microfone. O público aplaudiu na certeza de que valeria a pena, mas nem ele podia prever quanto.
A extraordinária fusão de Badu do passado com o presente e até o futuro é inebriante, levando-nos para outros planetas que ela decerto já conhece, tendo de lá colhido os frutos para semear o seu afrofuturismo perfeito. Acompanhada pelo que será provavelmente o melhor conjunto de músicos e cantores que encontrou em toda a América, Badu enfeitiçou-nos com a sua voz de mel que entra em desvario sem nunca abandonar a rota necessária. Depois de começar com o apropriado “Hello”, retirada do seu último disco, But You Caint Use My Phone, de 2015, a viagem focou-se, muitas vezes, em Baduizm, álbum dedicado a todos os “nineties babies” que agora compreendem o que também veio ao mundo em 1997. Desde clássicos reconhecíveis como “On & On” ou “”Next Lifetime” a reinvenções delirantes dos acordes originais de cada, o espetáculo de Badu, que acabou por se estender muito para lá das duas da manhã, soube a pouco e a tudo ao mesmo tempo: Badu é uma entertainer como há poucas, entregando-se a danças entusiásticas e até lançado um flirt particularmente agressivo com o sortudo cameraman. Mas é, claramente, apenas um ser humano. Ou será? É difícil ter certeza depois da sua passagem pelo NOS Primavera Sound. Quando já nos momentos finais do espetáculo pediu à audiência para esticar diante de si as palmas das mãos, e, sentindo-as a aquecer, verificar que agora “somos todos parte do mesmo”, agradecendo, ficámos sem saber quem é que devia agradecer a quem. E o atraso? Esquecido, perdoado, valeu a pena sim, podemos responder com a mesma certeza com a qual afirmamos que o céu é azul.
Com as massas a abandonarem o último concerto do palco principal do NOS Primavera Sound completamente assombradas pelo bruxedo de Badu, seria difícil chamá-las para outro logo de seguida. Mykki Blanco, rapper americano já familiarizado com o público português, claramente sabe agitá-lo independentemente de nacionalidade. Blanco é como uma criança que não consegue parar quieta, no melhor sentido: sobe para cima de tudo, pega em tudo, corre de lado a lado do palco com o seu vestido branco a esvoaçar ao vento de madrugada. Blanco possui também uma vertente vincadamente política na sua música, evidente pelo discurso que antecedeu a sombria “High School Never Ends”, o primeiro single que jamais lançou no passado ano de 2016, no qual instigou o desprezo por um “corporate pride” (referindo-se à comodificação das marchas LGBT que se observam um pouco por todo o mundo ao longo do mês de junho). Blanco é um showman incansável, que faz de tudo para manter a sua audiência entretida: desde puxar a palco membros do público apenas para os atirar para trás ao fim de uma música, a saltar para meio do povo, a correr pelo relvado do recinto para o terror dos seguranças. O seu concerto culminou com um momento generosamente cedido à sua companheira em palco, a brasileira radicada no Reino Unido DJ Lyzza, que mereceu cada aplauso que foi distribuído entre ela e uma das mais distintas personalidades a pisar qualquer um dos palcos do NOS Primavera Sound.
Ao fim de quatro cancelamentos, receios metereológicos e ansiedades aéreas, sobrevivemos, e o NOS Primavera Sound continuará pelo Parque da Cidade enquanto se encher como enche: no próximo ano, já há confirmação dos enormes Pavement (sendo este concerto um dos dois únicos que darão). Os visitantes despedem-se das letras ondulantes que flutuam acima da entrada para o Parque da Cidade, que amanhã, domingo, já terão entrado numa folga de doze meses. Levam, na mala, um peso a mais, mais música para ouvir, para descobrir, para explorar, para pensar. Do reggaeton, ao pop, à eletrónica, ao indie rock, ao soul. A vida é feita de escolhas – mas é bom existirem sítios onde não é preciso escolher.
Texto: Beatriz Negreiros e Carlos Vila Maior Lopes || Fotografia: Inês Silva