A noite foi de Nick Cave, como não poderia deixar de ser. Foi tão assim, que o céu não parou de derramar sobre nós uma “weeping song” constante.
Ainda a chuva. Deu-nos tréguas no segundo dia, voltou ao terceiro. Nada a fazer a não ser desfrutar do último terço do Festival, trabalhando. A tarde começou com Luís Severo e sua banda. No Palco Seat, o jovem Severo começou por disparar uma série de tiros certeiros, como “Cara d’ Anjo”, “Escola” e continuou com “Meu Amor”, terminando com “Ainda é cedo”. Nestas e noutras canções, percebe-se que a “escola” de B Fachada se faz notar. Mal nenhum nisso, até porque nas composições de Luís Severo há bem mais do que essa circunstância. Ao fim de apenas dois álbuns de estúdio (e ainda Pianinho, disco ao vivo gravado no Tivoli), a verdade é que podemos dizer que o músico já vai deixando exposto um rasto de canções bem interessantes, delicadas, quase frágeis, mas honestas, mesmo que (aparentemente?) envoltas em alguma inocência. Começou bem o dia do adeus ao Porto. Começou devagarinho, mas com estilo e sotaque nossos.
Logo a seguir, duas bandas de rock. Belako, no Palco NOS, vindos do país basco, simpáticos e divertidos e com uma boa frontwoman. Ao mesmo tempo, no Palco Seat, os britânicos de nome comprido, ritmo fácil e eficaz, por vezes a lembrar bandas dos anos 80 da cena alternativa (como os Waterboys, por exemplo) da velha Albion: os Rolling Blackouts Coastal Fever. Ficaram espantados com o clima de chuva, dizendo que em Inglaterra estava sol. Pois, isto anda tudo trocado.
Mas nós não. Fomos até ao Palco Pitchfork espreitar Vagabon e não nos arrependemos. No primeiro concerto destes miúdos (é dessa faixa etária que se trata, de facto) em Portugal, mostraram um rock alternativo digno e convincente. A voz de vocalista não ajuda muito (talvez demasiado grave para as estridências do estilo), mas funcionam bem enquanto conjunto e as virtudes de um power trio em palco nunca são de menosprezar. Passaram com facilidade a prova de estreia.
Um pouco mais ao lado e mais abaixo, Kelela dava conta de outros caminhos, os do R&B e da eletrónica. Com tão pouca coisa lançada em mais de quatro anos de “existência”, Kelela vai seguindo o seu caminho e ganhando respeito no seu espaço de intervenção. Para os apreciadores do género, o tempo não foi perdido.
Mais uma correria, mais uma banda de rock. Os Flat Worms fazem lembrar Parquet Courts e agarraram o público desde o início. Rock cheio de músculos e orelhudo. Boa presença em palco, boa entrega. E nós, molhados quase até à medula em tortura de chuva lenta, íamos tentando dançar para sacudir a água que vinha do céu. O melhor era não parar, aproveitando um pouco de tudo o que ia acontecendo ao mesmo tempo. Next stop, Metá Metá.
No Palco NOS atuaram os brasileiros que misturam jazz, mpb, tropicalismos vários, África, música do mundo. Belo concerto de um grupo muito pouco conhecido entre nós e que merecia outro espaço, outro tempo, outro público. Músicos fantásticos, como tantas vezes os brasileiros sabem ser. Na música, ganham o Mundial.
Até que os Public Service Broadcasting iniciaram o seu concerto. Ainda, e sempre, à chuva, foi um espetáculo torrencial. Um dos melhores de todo o Festival. A batida kraut, os ecos de Kraftwerk, o imaginário das grandes guerras, invenções, cinema até meados dos anos 50 do século passado, tudo isso reside nos Public Service Broadcasting. Como se todas estas particularidades não fossem já suficientemente interessantes, juntam-lhe um forte apelo de dança que torna tudo ainda mais irresistível. Que hora bem passada, que concerto meticuloso (quase matemático), que fleuma britânica, que maravilhoso prazer! Enormes, estes senhores!
“Do you love me?”, perguntou Nick Cave, cantando para milhares e milhares de pessoas. A resposta veio em coro num imenso Yes! O atual momento de Cave é, como sabemos, menos feliz, sobretudo a nível familiar, mas quando os temas mais clássicos surgem, quando as descargas de energia acontecem, volta a magia a que nos habituou. E foi bem fundo no tempo, até “From Her To Eternity”, por exemplo. Mas foram tantos os temas históricos que não valerá a pena lembrar todos. No entanto, soube bem ouvir “Red Right Hand”, “Into My Arms” (com todo o recinto a cantar em coro até ao infinito arrepio), “Tupelo”, entre muitas outras canções. Nick Cave continua a ser um animal de palco e o tempo não parece deixar marcas na sua fisionomia. Deve ser das bad seeds da vida. Não estivemos suficientemente perto para reparar nos sapatos, mas devem continuar a ser dos baratos. “Weeping Song” quase nos fez chorar, como acontece com o pai que a canção evoca. Mas logo a seguir veio o demónio de “Stagger Lee” e a crueldade do seu imaginário retorcido. Brilhante e louco ao mesmo tempo. O mais belo caos! Para o fim, a comunhão absoluta com muita gente do público a marcar presença em palco a cantar com o mestre “Push The Sky Awsy”. Incrível!
Depois ainda estivemos em The War on Drugs, mas a experiência foi ingrata. Culpa do bom e velho Cave. Deram um bom e animado concerto, mas na verdade já nada mais nos apeteceu ouvir e escrever. Achamos que nos compreenderão. Acabámos assim, neste estado de graça. Até para o ano, NOS Primavera Sound!
Fotografia: Inês Silva