O NOS Primavera Sound começou a meter água, mas as estrelas da noite foram amigas. Bons concertos, bons momentos, rock, pop e hip hop de mãos dadas para que ninguém ficasse insatisfeito.
Os Foreign Poetry abriram, a par com os Fogo Fogo, o NOS Primavera Sound 2018 e como por magia, a chuva parou. O grupo faz jus ao nome que tem. São todos “estrangeiros” que se juntaram numa banda. Dois Ingleses, um nascido na Nova Zelândia, outro na Áustria e uma bonita espanhola. A meio caminho entre o jeito baladeiro e a folk, o que fomos ouvindo primou pela elegância e pela sobriedade. Não trazem nada de novo, mas o que fazem tem fôlego e impacto, garra e presença. No entanto, ouvindo-se as primeiras quatro ou cinco canções, percebe-se o que têm para dar até ao fim do concerto. Ouvem-se bem, mas o som algo nostálgico contrastava forçosamente com o que sabíamos estar a acontecer nesses exatos momentos no Palco Seat. Os Fogo Fogo prometiam incendiar o palco com o funaná que tocam. Queríamos saber se era mesmo assim, e fomos numa corrida até lá.
Era verdade. África não falha. Estes amigos partilham o gosto pelo ritmo e entre os cinco parece haver vontade de competir na intenção de merecerem (cada um deles) o prémio “eletricidade em palco”. Agora sim, parecia ter chegado o tempo quente. Fogo Fogo é o seu nome e a boa vibe que passaram para o público contagiou-nos. Tudo dançou, tudo cantou, mesmo que as letras não fossem conhecidas. Os “yô yô yô” bastaram. E assim, num repente, passámos todos de europeus a africanos. Afinal, o “Fogo” não tem necessariamente de queimar. Também pode depurar.
Do funaná para o rock. De cinco homens para cinco mulheres. A mudança foi súbita mas proveitosa. Waxahatchee trouxe indie rock ao Festival, e foi tão bom ouvir o que parece já estar a cair no esquecimento de muitos das novas gerações. Canções simples, descomplicadas, repletas de energia de guitarras sedentas de fazer vibrar eletricidade por todos aqueles que se encontravam à frente do principal palco do Parque da Cidade. A chuva continuava a dar tréguas depois de horas e horas em queda ora suave, ora mais intensa. Talvez por isso tenha sido reconfortante ouvir a “tempestade sonora” que vinha da banda da muito bonita e sardenta Katie Crutchfield. Ter três guitarras, baixo e uma bateria em palco é já (quase) um luxo nos dias festivaleiros que vão correndo. Num momento de maior descontração, Katie perguntou se o público estava ansioso por ver e ouvir Lorde, acabando por cantarolar alguns versos de “Homemade Dynamite”. Foi simpática a referência. Waxahatchee foi mais do que isso. Foi ótima!
Já no palco Super Bock o tempo era de fúria. Mais rock, muito mais rock à maneira dos anos 70 com punk à mistura. Os Starcrawler são verdadeiramente imparáveis. Canções curtas que são autênticas pedradas sem dó nem piedade, uma vocalista a roçar a demência interpretativa, rock de terra queimada. Nada fica em pé (todo o suporte do microfone foi atirado para o fosso dos fotógrafos), nada resiste a estas canções. Ouve de tudo numa atuação com bolinha no canto superior direito. Loucura, sexo, drogas e rock n’ roll.
Depois de mais uma corrida, ainda conseguimos ouvir os três últimos temas dos Twilight Sad. Deve ter sido intenso e muito emotivo, o espetáculo. James Graham terminou em pranto e assim saiu do palco perante uma enorme ovação do público. Os escoceses tão admirados por Robert Smith terão deixado marca a quem os viu e ouviu. Infelizmente, é só desse eventual encantamento que podemos dar conta. É impossível chegar aos quatro cantos da casa ao mesmo tempo…
Com o alinhamento do dia a decorrer em alta velocidade, tinha chegado a vez de Rhye. Era de novo a calma, um mar de tranquilidade, a voz de falsete embalada por melodias açucaradas. Era já oito da noite, embora a escuridão ainda não se fizesse sentir. Mas a melancolia de banda de Milosh parecia empenhada em trazê-la aos poucos, devagarinho, sem grandes pressas. Foi o momento ideal para se respirar um pouco, tentando-se aproveitar a pop que se ia soltando do palco NOS Primavera Sound. Vimos muitas meninas sonhadoras a dançar de olhos fechados e sorrisos nos lábios. Percebe-se bem a razão.
Com algum atraso fora do comum nestes acontecimentos festivaleiros, lá se deu entrada, no Palco Seat, a Father John Misty. Esperado por uma pequena multidão, o “místico” homem que nos mostrou Pure Comedy no ano passado revelou as credenciais que lhe conhecemos. É um “animal de palco”, o bom barbudo. A América, finalmente, havia “aterrado” no Porto. Talvez assim já se percebesse melhor o “delay” da sua entrada em cena. No entanto, há que dizê-lo, já o vimos em melhor forma e com um espetáculo mais interessante, mais “matador” e menos baladeiro. Mas foi apenas bom aquilo que se esperava ser ainda melhor.
Mas o dia era de rock e do bom e Ezra Furman é um dos grandes. A evolução num músico (ou em qualquer artista, naturalmente) é sempre uma coisa admirável e isso nota-se bastante em Furman. De lábios bem garridos de baton rubro, Ezra foi desenrolando temas recentes e outros mais antigos, mas em todos há uma marca de identidade (não é de género que falamos, entenda-se) muito própria e cada vez mais depurada. Uma festa, portanto, e um homem de fato branco e saxofone em palco bem ajudou a fazer do concerto de Ezra Furman o melhor da noite. Não tem preço este pop-rock-indie-and-whatever-more-you-name-it. Nas baladas faz lembrar Robyn Hitchcock e os seus The Soft Boys, o que é coisa de valor. Como de valor são as suas canções sobre paranóia à beira do precipício. Repetimos: foi a melhor atuação da noite. Acabou de vestido justo, cantando canções de homem!
E o que dizer de Lorde, cabeça de cartaz que agrada a muitos e nem tanto a tantos outros? Incensada pelo imortal Bowie, Lorde tem vindo a trilhar um caminho que lhe vai garantindo estrelato mundial. É novinha, tem apenas 21 anos e em 2017 mostrou ao mundo o álbum Melodrama e é sobretudo com ele que tem vindo a dar concertos como o de ontem. Não é de estranhar o mar de gente que queria ouvir e cantar “Sober”, “Magnets”, “Green Light” e a já mais antiga “Royals”. Diz- se dela que o futuro será bastante risonho, sobretudo porque nela parece não haver grandes filtros e tudo se mostra de forma direta. Ouvem-se alguns ténues ecos de Kate Bush, sobretudo em “Rider in The Dark” (que não apareceu no alinhamento de ontem) e as suas letras falam, muitas vezes, dos desamores de quem têm idades de alguma inocência. Mas Lorde é tudo menos isso. Sabe bem o que quer e o que faz. Não para um minuto e dança um bailado muito próprio em palco. Tudo é expressão sonora e gestual. A maior cabeça de cartaz do primeiro dia do NOS Primavera Sound saiu do palco com a sensação de dever cumprido.
Depois, lá mais para as onze e meia da noite, no Palco Seat, entrou em cena um conhecido menino rebelde do hip hop americano. Tyler, The Creator soube cavalgar a onda do momento, tendo a seus pés o público mais jovem da primeira noite do Festival. Canções como “See You Again”, “November”, “Glitter”, “Tamale” e “Who Dat Boy” fizeram o delírio de todos, e assim se foi construindo um concerto que levou ao mais puro êxtase os amantes do estilo. Apesar do seu último álbum ser mais introspetivo e autobiográfico (“I’ve been kissing white boys since 2004”), este MC compositor e produtor continua rebelde e desafiador, algo que não espanta os que conhecem a matéria prima que está na base do estilo e do conceito deste tipo de som. É, muitas vezes, música de combate e ontem, Tyler, The Creator ganhou facilmente por KO.
Já com a noite a pedir descanso, ainda estivemos com um ouvido em Moullinex e com o outro em Jamie XX. Mais duas pedradas certeiras a pedir dança de copo na mão. Eram milhares, uns com os rostos mais fechados e olhar fixo no chão, outros com sorrisos rasgados e agradecidos. O dia foi bom e a chuva não voltou a cair desde meio da tarde.
Fotografia: Inês Silva