A partir de Kid A, os Radiohead ultrapassaram os limites do rock convencional, embarcando num oceano sonoro inesperado e desconcertante, mas ao mesmo tempo estranhamente familiar. Aquilo que se tornou mais evidente na altura foi a sensação de que a melodia passou a importar menos que a percussão (idioteque) – a ambiguidade na estrutura rítmica da música suscitando danças parkinsonicas . Tudo isto atordoando-me completamente quando em 2000 o escutei, e depois ao Amnesiac.
Como exemplo, o compasso de “Pyramid Song” é frequentemente descrito como 4/4, mas a sua complexidade surge da interação polirrítmica dentro dessa métrica aparentemente simples. O piano (Thom Yorke) apresenta um padrão rítmico que se sobrepõe à pulsação principal, criando uma sensação de dissonância e adicionando uma camada de instabilidade e tensão à música.
Há bastante debate na internet acerca disto, qual o compasso da “Pyramid Song”. Ora, há quem concorde que o piano de Thom segue um motivo rítmico que alterna entre compassos 3/8 e 4/8, num padrão de hemiola, onde grupos de três batidas se sobrepõem a grupos de duas. Esta alternância intrincada cria um efeito polirrítmico contra o medidor 4/4 consistente mantido pelos outros instrumentos, particularmente a bateria e o baixo. A justaposição desses elementos rítmicos contrastantes é reflectida na qualidade etérea e onírica da música.
Para maior profundidade acerca do assunto, convido os leitores a lerem isto.
Mas não é preciso entender estas ideias na sua totalidade (eu não tenho formação musical) para gostar da música de Thom Yorke (ele que, por acaso – ou não -, não sabe ler música). Mas se não se sentir – e sublinho esta palavra, sentir, – que se está diante de uma inusitada complexidade rítmica, não sei se se conseguirá alguma vez apreciar verdadeiramente esta dimensão de Radiohead.
Tem sido dito que The Smile é Radiohead sem a pressão de ser Radiohead. Só Deus o sabe, mas há certamente um elemento de jazz/improv que pode sugerir isso, um sentimento menos intenso, chegando quase, em momentos, a ser leve. Já a maneira meticulosa como os arranjos e a produção são feitos não me parece muito distinta do habitual. O que me parece evidente é que a maneira como Yorke e Greenwood fazem música continua enraizada no Kid A/Amnesiac, tanto a nível rítmico como a nível atmosférico, ainda que The Smile tenha um som mais analógico.
Ora bem, o Wall of Eyes inicia-se com a faixa “Wall of Eyes”, que justamente abre as portas ao entendimento rítmico de The Smile, sendo provavelmente a melhor peça do disco. Começa com um ritmo bossanova mas em 5/4, depois a voz de Yorke chega desfasada, com o atraso que lhe é costume (“Go to Sleep” vem à memória), surgem então as cordas ao fundo magistralmente arranjadas pelo Greenwood, hesitando entre desassossego e melodia.
Quando Thom mais tarde canta o compasso, “one two three four five”, está a explicar tudo a quem atenta menos a estas coisa que tenho andado a falar. Torna-se assim por demais evidente a presença de vários ritmos em simultâneo, acentuados com a segunda guitarra que dedilha em adormecimento epiléptico.
“Read The Room” consegue a proeza de ser a melhor do álbum, na minha opinião (tudo aqui é a minha opinião, excepto quando digo que Thom Yorke é o melhor músico que jamais existiu, isso é puramente factual). Atentem aos primeiros 15 segundos: duas guitarras cada uma em ritmo 4/4, mas uma delas começando uma batida tarde de mais, lembrando a poliritmia da “Guitar Counterpoint” do Steve Reich. Essa sobreposição faz-me duvidar do compasso, mas ele depois é confirmado quando entra o baixo e a bateria – um vulgar 4/4. Só que depois numa das frases a métrica alonga-se para 5/4. É portanto 4/4 3x e depois 5/4. Surge então a parte doce do honey bee (o refrão?), em que o compasso muda para 3/4 (ele explica, I’m gonna count to three, keep this shit way from me). Segue-se desconcerto, refrão, e depois algo extraordinário. Guitarra bem ao estilo pós rock mas com compasso 5/4 + 6/4, ou se quiserem 11/4 – foda-se. Enquanto isto a voz de Thom sobrevoando etérea e enérgica, como um shaman que nos faz esquecer por uns momentos que tínhamos roupa para passar a ferro.
“Friend of a Friend” estranhamente soa de início a Burt Bacharach (wtf), mas sem o azeite. Fala-nos dos tempos do covid, em que as pessoas apanhavam sol dos seus terraços. A musica vai-nos levando para um sentimento de estranha tranquilidade, embalando-nos com nostalgia, pautada por belíssima percussão do Tom Skinner e cordas da Orquestra Contemporânea de Londres. Só que depois “we take a tumble and catch a piece of sun”, o som cresce em ansiedade, não augurando nada de bom, e cedo termina na eterna constatação de que a humanidade é no geral uma merda, especialmente a nível dos governos de direita que pretendem defender o mercado livre mas na verdade tendo como objectivo o capitalismo de compadrio, em que o dinheiro flui dos contribuintes para PPPs. All of that money, where did it go? Somebody’s pocket, friend of a friend. A pergunta não tem raiva, não tem angústia, não tem sequer desilusão. Um encolher de ombros, tristíssimo. Claramente é a melhor peça desta obra.
Mas dito tudo isto acerca da riqueza rítmica de The Smile, a “Bending Hectic”, tendo o ritmo mais simples de todos, acaba por provavelmente ser a que me deixa mais arrebatado de cada vez que ouço este álbum. A vertigem do precipício que sucede a flutuação cristalina é irresistível. Leva-me para Beethoven, em que, depois de o conhecermos, sabemos sempre que a seguir à melodia vem a loucura e angústia. Uma road trip de olhos fixados no horizonte: a aparente tranquilidade existe apenas pois sabemos que tudo está perdido. Do outro lado da curva encontraremos o nosso destino, e este é violento e inexorável.