Transbordante é a palavra: de vitalidade, de urgência, de ousadia. Punk no coração mas mandando à merda qualquer manual de etiqueta. Uma declaração de guerra a tudo o que é comezinho e arrumadinho. Forte candidato a disco tuga do ano…
Estamos quase em novembro e os meus ouvidos dizem-me que já tenho o disco tuga do ano. Digo-o quase sem medo, sabendo que estão para sair álbuns de duas das minhas bandas preferidas (Sunflowers e Hetta), mas digo-o de coração! Sim, sei que posso estar deslumbrado (já irão perceber), mas este é um disco que me tem conquistado mesmo antes de sair (também já irei contar) e o disco que mais ouvi até ao momento… e até mesmo quando a otite me tapou o ouvido esquerdo.
Conheci Vaiapraia no início deste ano, num concerto nas Damas, ainda antes de Alegria Terminal sair. Estava em período de luta contra embirrações tontas, perdoem-me a redundância, e achei que deveria combater a ideia que tinha formado a partir de um vídeo ou outro no YouTube! Ora, é com algum contentamento interior (indulge me, como dizem os bifes) que chego aos cinquenta com o poder de ir combatendo algumas (I’m not fucking perfect) ideias que se vão de forma estupidamente fácil cristalizando num cérebro pouco elástico e já algo queimado. Não conhecia a obra de Rodrigo Vaiapraia e esta crítica não fará nem enquadramentos históricos nem comparações. Haverá outras, de gente (muito mais) capaz onde possam encontrar tais ensaios, e de onde sairão mais felizes se for isso que procuram. Chego aqui com múltiplas audições de Alegria Terminal e com três concertos deliciosos no bucho. É um bucho cheio – até de tanta gula – e pronto! E daí o possível deslumbramento… mas quem é que é inventou que isso era mau?
Foi muito fácil ficar enfeitiçado com as letras de Vaiapraia. O moço parece escrever com a desenvoltura do Sérgio Godinho, brincando com as palavras e a dicção – «O x-acto lamina, a tesoura recorta / O tempo fulmina a memória torta» – e as narrativas cruzadas do Lobo Antunes – «Ecos a rugir, boom, chinfrim / Eu não te consigo ouvir, nem tu a mim» (“Ulucrudador“). A história não é direta nem explícita – o Carlos Tê não mora aqui – e dá mais do que espaço para conjecturar, para imaginar o que esta criatura estará a pensar, estará a viver, estará a imaginar do que viu, ouviu e/ou viveu! Tem, sobre mim, esse fascínio.
Para além de sobrepôr histórias, as letras misturam línguas, personagens e assuntos. Ele está a cantar sobre o quê, mesmo? É deliciosa essa ambiguidade, esse espaço para a nossa imaginação… Essas entrelinhas onde podemos colocar os pedaços da nossa vida e fazer das dele as nossas canções. Nesse sentido, Alegria Terminal, soa tanto a sentença como wishful thinking! A rejeição pode ser apenas «a liberdade de alguém tomar uma decisão»… tanto dói como o caraças como nos pode libertar. Mesmo que Rodrigo tenha vencido «a rimar ar com ar», de básico terá muito pouco ou nada! É pesado … um pesado cheio de ar para respirar, para inspirar!
Musicalmente, Alegria Terminal é o expoente máximo do que o meu mestre e amigo, Ricardo Romano, chama de “rock apunkalhado e louco e divertido”! Um novo punk que foge às fórmulas e privilegia “a desarrumação e a atitude provocatória”! Tal como nas letras, misturam-se e sobrepõem-se influências, estéticas e épocas. Será finalmente a síntese de punk e prog? Não, devo estar a delirar … mas até que poderia ser! A produção é austera, mas perfeita para ouvirmos as melodias, as mudanças de tempo e todos os detalhes na perfeição! Juntam-se os teclados modestos mas incisivos de Rodrigo às deliciosas frases das guitarras de Francisca Ribeiro (chica) que passeiam entre o puro punk, o indie rock e o belíssimo goth dos oitenta, numa orquestração sustentada por uma esquizofrénica secção rítmica a cargo do baixo de Beatriz Diniz (April Marmara) e a bateria de Ana Farinha (Candy Diaz). No topo deste muffin caseiro de caramelo salgado, a reluzente cereja de uns coros que já não se ouvia há muito tempo!