A noite do passado dia 6 de Dezembro, na Galeria Zé dos Bois, foi uma noite celebratória da música electrónica. Não o foi num sentido revivalista, de olhar virado para o passado, antes para o futuro e para a cartografia de territórios incertos, ainda por explorar.
André Gonçalves foi quem começou a noite. Para os mais distraídos, Gonçalves é um dos nomes mais importantes da música electrónica em Portugal, muito graças ao seu trabalho enquanto cara principal da ADDAC System – uma empresa dedicada à invenção e ao fabrico de alguns dos mais complexos e inovadores módulos para sistemas modulares, com grande expressão no mercado estrangeiro.
Em palco, a técnica de Gonçalves ganhou expressão (ainda mais) artística, deixando de lado a máquina de soldar e a lógica para se perder nas camadas de objectos sonoros que nos ia apresentando. Perdemo-nos no meio das suas composições híbridas, que fundiam sons orgânicos (harpas? pássaros?), analógicos e digitais numa corrente sono-luminescente, ora sintética ora natural. Chamar a música de André Gonçalves de ambiental poderá ser ingrato mas também o seu contrário. Os solenes crescendos de partículas sonoras criavam, sim, os ambientes mais diversos, sem se esgotarem ou perderem em clichés muitas vezes associados ao género. Poder-se-iam mencionar outros rótulos, mas aquilo que escutámos esbatera os limites inerentes a possíveis classificações. O mistério escondido debaixo dos fios e circuitos do seu sintetizador modular ganhou forma humana no final do concerto. Os feixes de luz que o iluminavam por trás, ponto de fuga que fugia dessa condição, deram lugar a um corpo desconhecido. Uma figura vestida de branco, no escuro, qual som que emerge do silêncio, matéria que surge na anti-matéria. Agarrava-se a um microfone, palavras e versos soltos irrompendo microfone a dentro, levando-nos à introspecção. A incerta electrónica fundia-se com os ecos do vocalista, que mais tarde, findado o concerto, percebemos se tratar de Casper Clausen (Efterklang, Liima).
Pouco tempo tivemos para processar o claro-escuro musical de André Gonçalves, já que daí a poucos minutos entrava em palco a espanhola JASSS. Na ZDB para apresentar o material da sua residência artística na ADDAC, co-produzida pela ZDB e o Matadero Madrid. Se com Gonçalves houve lugar à luz, tanto física como metafísica, JASSS trouxe com ela escuridão e negrume telúrico. As paredes da sala esbateram-se, os limites espaciais em constante mutação na nossa cabeça, a força do subwoofer a substituir-nos o pulsar do coração. A viagem ruidosa foi de total imersão, ficando de lado a percepção do lugar e entregando-se o nosso corpo ao som, que não ofereceu misericórdia. No final custou abrir os olhos perante a luz. Lá fora, esperava-nos a realidade, concreta e tangível. Éramos de novo recém-nascidos, recém-saídos do útero onde tudo era som, possibilidade e dúvida.
Fotografia: Carolina dos Santos