Uma das fases artísticas mais fracturantes e polémicas de Bob Dylan está também associada à popularidade da pirataria áudio, da gravação e edição ilegal de concertos. Mas a partir dos anos 90, o legado das bootlegs transformou-se numa das mais brilhantes colecções discográficas de Dylan.
Nesses dias, já tão distantes, anteriores à internet, anteriores aos telemóveis que fotografam, filmam e que acedem em segundos a plataformas de partilha como Youtube ou Instagram, para alguém saber como era determinado concerto, tinha mesmo de estar presente. Ou…. esperar por uma falcatrua em forma de áudio, apelidada de Bootleg.
Actualmente damos como garantido saber imediatamente como é um concerto de determinada banda, que surpresas têm preparadas para o público, qual o alinhamento, como é que o artista toca determinada música ou como o público reage nos vários momentos do espectáculo.
Aliás, até podemos argumentar, que, em grande escala, os concertos estão pensados para serem fotografados, filmados e partilhados, de forma a gerar noutro público potencial, a vontade em assistir ao espectáculo daquela digressão.
Mas até ao momento em que a internet ficou acessível à maior parte das pessoas, a forma de perceber como é uma banda ou artista ao vivo, era através de registos de concertos. E para isso, existem, de facto, as edições oficiais dos concertos, álbuns ao vivo e concertos editados em VHS, DVD e mais recentemente em Blu-Ray.
Mas existiu um período da história da música popular, em que a única forma de atestar o talento em concerto, era adquirir uma edição não oficial. E o processo de gravação dos espectáculos e consequente fabrico de discos em vinil e distribuição desta forma ilegal de comércio de música, dava por si, um longo e fascinante artigo.
Serve esta introdução para nos tentarmos colocar no lugar de um ávido consumidor de música naquele tempo distante, antes da partilha frenética de informação.
Imaginemo-nos em meados dos anos 60, no meio da explosão do rock n’ roll, uma enorme força de contra-cultura na sociedade da época e que contaminou toda uma juventude em busca do sentido da vida através da música, das letras das canções e da pujança da electricidade e de ritmos intensos.
E nesse momento, eis que loucos entendedores de sistemas de áudio, gravadores e microfones, se escondiam dos seguranças nos concertos com os seus equipamentos pesados e gravavam as actuações. E em retrospectiva, até os podemos chamar de heróis, por captarem momentos que ficariam apenas na memória de alguns eleitos e se perderiam na História.
A esses loucos, devemos algumas peças do imenso puzzle da história da música, pois nessas gravações não oficiais, ouvimos o lado cru e sincero das actuações, sem o lado mais polido das edições ao vivo pensadas pelas editoras e que muitas vezes, levavam as bandas para estúdios para “melhorarem” sequências musicais que ao vivo não saíram tão bem.
Como a única forma de consumir música naquele tempo era através da rádio ou através da compra de discos, o mercado discográfico na década de 1960 floresceu. E, em paralelo, crescia também o mercado das bootlegs, o das edições ilegais e de gravação de concertos pelos fãs.
O termo bootleg, é pedido emprestado ao período da Lei Seca nos E.U.A. e ao contrabando de álcool. Passa a fazer parte do léxico da indústria musical e é um primeiro embate das editoras com algo difícil de controlar e que flanqueia o monopólio dos grandes selos discográficos.
As novas ferramentas de captação de áudio, associadas a um crescente desenvolvimento tecnológico, permitiu cada vez melhores gravações ao vivo, que a seguir seguiam para fábricas D.I.Y. de duplicação de discos. Nasciam assim pequenas editoras que colocavam no vinil sons inéditos.
Para além das gravações ao vivo, também surgiram bootlegs com registos de estúdio, especialmente com a reunião de temas que por alguma razão ou outra não foram editados em determinados territórios. Há exemplos de discos que no Reino Unido surgiam com um alinhamento de canções bem diferente do que surgia na edição nos Estados Unidos da América. E os especialistas na produção de bootlegs, lá faziam um disco ilegal com essas canções. Em muitos casos, seria mesmo a única forma do público ouvir determinado tema.
Apesar da ideia de gravar concertos de forma ilegal e a seguir fazer uma edição em vinil tenha nascido antes dos anos 60, a verdade é que foi neste período que cresceu de forma meteórica. E há um nome responsável pelo sucesso da primeira bootleg da era do rock: Bob Dylan.
Ken Douglas e “Dub” Taylor eram dois rapazes de Los Angeles aficionados pela música gravada e verdadeiros “diggers” de pérolas musicais inacessíveis ao grande público. Juntos criaram aquela que é considerada a primeira bootleg da era do rock e também a editora Trademark of Quality que se evidenciou durante as décadas de 1960 e 1970, ao colocar à venda edições não oficiais de nomes como Jefferson Airplane, Grateful Dead, The Rolling Stones, The Beatles, Led Zeppelin, Pink Floyd e claro, Bob Dylan. Os sinuosos caminhos tomados pelas gravações até chegarem às mãos da dupla californiana davam também um interessante filme musical. Mas a verdade é que as gravações, sejam outtakes de estúdio ou gravações em concertos, lá chegavam a estes pequenos produtores de discos de vinil.
E foi isso mesmo que aconteceu em 1969, após Douglas e Taylor reunirem uma série de gravações de Bob Dylan. Duas dessas gravações podem parecer ingénuas aos nossos olhos, mas acabaram preservadas e popularizadas precisamente nesta bootleg: uma actuação na rádio nova-iorquina WBAI em 1962 e uma ida ao programa de televisão The Johnny Cash Show em 1969.

Mas seriam as outras faixas que chamaram a atenção: gravações informais num quarto de hotel em Minneapolis em 1961 e as famosas sessões com os The Band em 1967 em Nova Iorque e que se tornariam nas emblemáticas The Basement Tapes.
A reunião destas gravações originou a bootleg Great White Wonder (palavras carimbadas a preto numa simples capa branca), uma edição dupla colocada à venda em 1969.
Mas foi o poder da rádio que elevou a bootleg ao estatuto de culto. Pouco preocupadas com questões legais, uma série de rádio de Los Angeles começaram a tocar as canções de Bob Dylan, temas impossíveis de encontrar em edições oficiais. E de repente, não só choveram pedidos de outras rádios para obterem as gravações, mas também dos fãs de Bob Dylan, que começaram a procurar o LP duplo.
Rapidamente, a bootleg Great White Wonder se tornaria na mais popular edição não oficial do cantautor norte-americano e abriu caminho para o sucesso de toda a pirataria sonora que se seguiu, apesar das batalhas jurídicas lançadas pelas principais editoras de música. Mas as bootlegs nunca esmoreceram e se algum leitor deste texto foi consumidor de música durante os anos 90, pode atestar mesmo isso, com diversas gravações de bandas alternativas e underground da época a surgirem mesmo em estantes de algumas lojas de discos independentes. Claro que com a chegada em grande escala da internet, a produção de bootlegs esmoreceu, mas não o interesse pelas gravações de outrora, finalmente disponibilizadas online para um público ainda mais vasto, disposto a descobrir gravações únicas dos anos 60, 70, 80 e 90.
Bob Dylan, apercebendo-se do enorme interesse nas suas canções não editadas, preparou terreno para um regresso à popularidade das bootlegs, com uma caixa de discos que fez história durante a década de 90.
Aconteceu em 1991 a edição do primeiro tomo da The Bootleg Series, neste caso Volumes 1 – 3 (Rare & Unreleased 1961-1991).
É um imenso regresso ao cofre de gravações de Bob Dylan, em diferentes formatos, desde outtakes de estúdio, demos, jam sessions e gravações ao vivo, algumas já editadas ao longo dos anos, mas finalmente a surgir agora num registo oficial e que presta homenagem à cultura das bootlegs, às gravações piratas, legitimando os heróis dos anos 60 e 70.
Mas essa legitimação (e sejamos sinceros, também uma forma de reter direitos sobre gravações antigas e até então só nas mãos dos fãs) continuou e o Volume seguinte chegou em 1998. E aí sim, um concerto nunca antes editado de forma oficial e uma das bootlegs mais procuradas no percurso de Dylan.

“The Bootleg Series Vol. 4: Bob Dylan Live 1966: The “Royal Albert Hall” Concert” é o famoso concerto do “Judas”, palavra gritada a Dylan, acusando-o de traição à folk.
Este é um momento crucial na história do rock, da música electrificada. É o retrato da transição de Bob Dylan de artista folk, de canções à guitarra acústica, rumo à electricidade do rock n’ roll e de novas soluções melódicas e sónicas.
É a história de um concerto muito controverso, não só nos Estados Unidos da América, que conheceu este Dylan em 1965, mas também na Austrália e Europa, territórios que assistiram à digressão do compositor em 1966, acompanhado pelos Hawks, futuros The Band.
Os puristas da folk acusaram Bob Dylan de se ter vendido ao estilo do rock n’ roll. Mas Bob Dylan seguiu em frente, ajudou a moldar o próprio rock e a música popular pelo caminho. Mas sem pelo meio ouvir inúmeras contestações, especialmente em concerto. Nesta bootleg descobre-se isso mesmo. No entanto, é preciso primeiro um esclarecimento.
Durante vários anos, a bootleg circulou entre os fãs de Bob Dylan como o concerto captado em Londres no Royal Albert Hall, onde o músico encerrou a digressão. Daí o título “The Royal Albert Hall Concert”. Mas na verdade, o espectáculo foi gravado em Manchester, na sala Free Trade Hall.
Quando chegou o momento de oficializar a gravação e incluí-la na série de Bootlegs de Dylan, decidiu-se em manter o nome original, de forma a cimentar na História e na memória colectiva, o poder da gravação e distribuição pirata, que teve um papel fundamental em transformar a figura de Bob Dylan e aproximá-lo de um público maior.
O concerto de Dylan estava dividido em duas partes. Na primeira parte, canções acústicas, com o músico a sós no palco. Mas na segunda parte, Bob Dylan aparecia munido de guitarra eléctrica e acompanhado por banda e a tocar as novas canções.
Nesse espectáculo de 17 de Maio de 1966, em Manchester (e como sucedera noutros palcos), Dylan foi confrontado pelo público. E já no final do concerto, ouve-se com bom som na gravação, alguém a gritar “Judas!”.
Bob Dylan não se ficou e antes de arrancar com a música seguinte, virou-se para a banda e berrou “Play it fucking loud!”, frase que também é bem perceptível na gravação. E todos os músicos arrancaram com uma explosiva versão de “Like a Rolling Stone”, com os instrumentos no volume máximo que se conseguia em 1966. Mas foi uma conquista sem retorno possível. No final do tema, toda a sala aplaudiu, com o público finalmente rendido a este novo Bob Dylan.
Só por este momento, esta é uma bootleg obrigatória e que felizmente, desde finais dos anos 60, chegou a casa de muitos fãs e de entusiastas de música ao vivo. E por isso mesmo, Dylan a escolheu para surgir como o segundo tomo da Bootleg Series iniciada em 1991, percebendo o impacto que o concerto teve, não só na sua carreira, mas em todo o universo do rock n’ roll.

Bob Dylan é um fenómeno das bootlegs, provavelmente só ultrapassado pelos Grateful Dead e pela sua política de liberdade dada a todos os fãs que quisessem gravar os concertos da banda de Jerry Garcia (existia mesmo uma área reservada na plateia, apelidada de “floresta”, devido aos vários microfones empunhados e cujos suportes se viam à distância).
Até ao momento, já saíram, de forma oficial, 17 volumes da The Bootleg Series, algumas edições mais emblemáticas que outras mas que incluem um pouco de tudo, de concertos a jam sessions, faixas raras a demos, outtakes e actuações em rádios.
É um legado sem paralelo o de Dylan, que caminha lado a lado com o desenvolvimento da própria indústria musical. Tanto da parte legal, como das facetas mais ilegais, não fosse estar tão intimamente ligado à ascensão das bootlegs.
Ilegalidades proporcionadas pelos fãs, alguns que ganharam dinheiro indevido ao lucrar com as vendas das gravações e edições do it yourself ilegais, mas a grande parte, através de trocas e partilha dessas mesmas edições, viveram com a descoberta constante da música que ajudou a moldar ideias e ideais.