O Futuro Não Demora é uma profunda lição de história sobre o Brasil e sobre as questões de identidade, com complexos arranjos que dão cor e pujança às letras políticas e às camadas de referências culturais que fazem desta uma obra verdadeiramente ímpar na essência brasileira.
Hoje trazemos O Futuro Não Demora, de 2019, a terceira obra dos brasileiros BaianaSystem. Uma profunda lição de história não só sobre o Brasil, mas também sobre a América do Sul, construindo um discurso e uma estética que espelham a cultura afro-brasileira e expõem as estruturas económicas e sociais que tanto a marcam.
Ao longo de quase 40 minutos, somos invadidos pela percussão, pelos metais, pela guitarra baiana, todos eles iguais protagonistas, misturando o hip-hop com o reggae, o samba, afoxé, ijexá, rock, entre muitos outros. São complexos arranjos que dão cor e pujança às letras espirituais, políticas e de resistência que apresentam camadas de referências sociais e culturais, e que, no seu conjunto, fazem deste um álbum cirúrgico em todos os aspectos e uma obra verdadeiramente ímpar na essência brasileira.
O projecto musical, formado em 2009 por Russo Passapusso (voz), Claudia Manzo (voz), Roberto Barreto (guitarra baiana), SekoBass (baixo), João Meirelles (beats, sintetizadores e programações), Junix 11 (guitarra), maestro Ubiratan Marques (piano e sintetizadores), Ícaro Sá (percussão) e Filipe Cartaxo (concepção visual), visava trazer novas sonoridades para a sonoridade baiana, unindo a sua guitarra tradicional aos “sound system” (termo original para os sistemas de som móveis originários da Jamaica), possibilitando novas construções musicais.
Depois da estreia com o disco homónimo, em 2012, e o estrondo de “Duas Cidades” (2016), duplamente premiado e considerado um dos melhores álbuns do ano pela crítica brasileira, BaianaSystem atinge, e bem, um novo nível de reconhecimento com o prémio de melhor álbum de rock ou música alternativa em língua portuguesa nos Grammys Latinos de 2019 para O Futuro Não Demora.
Se a sua primeira escuta nos agarra de imediato, quer pelos ritmos incansáveis, quer pelas palavras sociais, são no entanto necessárias várias voltas para compreender e deixar entranhar melhor os vários símbolos criteriosamente colocados e que formam este portentoso retrato político da sociedade brasileira que cresce e ramifica até chegar a uma realidade global.
É impossível resistir ao inesquecível trombone que rasga no arranque da primeira faixa “Água” (ecoando o icónico carnaval de rua brasileiro), às referências a Zulu Nation, Nação Zumbi, Ilê Ayê em “Salve”, ao escritor uruguaio Eduardo Galeano (“Eu vou traçando vários planos/Nas veias abertas da América Latina” em “Sulamericano” – uma das canções mais marcantes do álbum, que também diz “Eu não acredito no Obama/Revolucionário, Guevara/Conhece a liberdade sem olhar no dicionário” e reafirma a resistência política), à espiritualidade que atravessa a energia jamaicana de “Sonar” e que “espalha luz à face da terra”.
Em O Futuro Não Demora, a identidade e estética brasileira encontram um novo expoente: o berimbau e a guitarra baiana ganham destaque em “Melô do Centro da Terra”, “Saci” recupera a mítica personagem do folclore brasileiro e “CertoPeloCertoh” carrega todo o batimento cardíaco da cidade de Salvador, trazendo para a linha da frente a luta pela justiça e o “certo pelo certo”.
É uma explosão de sons, ritmos e ideias, uma chuva que interrompe aqueles dias de intenso calor, uma montanha-russa brasileira que nos domina desde o primeiro instante, nos transforma e nos faz não querer sair nunca dela.
Nas palavras dos próprios, são “ideogramas, símbolos, grafismos, mapas, seres e cores se juntam aqui para banhar nossos sentidos, traduzir, ajudar a contar esse capítulo que mergulha na história para nos entender agora, no momento que estamos e para onde podemos apontar.”
Actualmente a maior “pipoca de micareta” do Brasil – expressão brasileira para descrever o palco móvel (mais conhecido por trio eléctrico) popular cada vez mais comum nas festividades brasileiras -, com circuitos que movem mais de um milhão de pessoas, BaianaSystem é, definitivamente, a maior revolução dos últimos tempos.
Quem foi ao festival Coala, em 2024, na primeira edição realizada em Portugal, num cartaz de luxo que incluía os icónicos Jorge Ben Jor e Gilberto Gil, terá certamente ainda gravada na memória o colosso que foi o concerto de BaianaSystem. Uma experiência estrondosa, verdadeiramente excitante e apoteótica, do princípio ao fim, com uma panóplia de músicos excepcionais que converteu absolutamente todos os que tiveram a sorte de assistir.
Aguardamos, pois, pela chegada do dia 13 de Setembro, data em que estaremos a receber novamente Russo Passapusso e a sua turma, no contexto do festival Pé na Terra, em Almancil, e cantar, saltar e emocionarmo-nos novamente, como se nunca tivéssemos saído do sonho baiano.
O futuro não demora.