O segundo dos Pogues é a sua obra mais comovente, pintando a tragédia humana com poesia, humor e romantismo.
No seu álbum de estreia, Red Roses For Me, os Pogues já haviam mostrado ao que vinham: despentear a música tradicional irlandesa com uma atitude punk (tipo os Dubliners mas com o desleixo dos Clash). Numa época obcecada com o moderno e o sintético (falamos dos florescentes anos 80), em que o folclore parecia uma espécie em vias de extinção, o gesto dos Pogues fora corajoso e inesperado. Fazê-lo a partir de uma Londres racista e sobranceira, onde os irlandeses eram tratados como cidadãos de segunda (envergonhados, muitas vezes, das suas raízes), acrescentou um subtexto político à sua ousadia.
Mas o que lhes sobejava em espontaneidade e loucura faltava-lhes ainda em inspiração. Tudo mudaria ao segundo disco, Rum, Sodomy & the Lash, repleto de imaginação melódica e de vivacidade poética, nunca traídas pela produção crua de Elvis Costello. Seja nas dolentes baladas ou nas frenéticas canções alcoólicas de baile, não se deixem enganar pela sua voz entaramelada e seu desdentado rosnar: Shane MacGowan subira à primeira liga dos escritores de canções.
MacGowan é herdeiro de uma distinta linhagem de artistas malditos (de Kerouac a Bukowski, de Lou Reed a Tom Waits), apaixonados pela vida dos marginais e falhados e reis da sarjeta. Onde os cidadãos respeitáveis vêem uma desprezível ralé de putas e bêbados e junkies e chulos, MacGowan olha para as suas personagens destruídas com ternura e compaixão.
Os pubs da Irlanda rural da sua infância são um dos cenários favoritos para as suas canções, mistura perfeita entre inocência pastoral e sonhos traídos. Segue-se o resumo Europa-América de algumas dessas histórias. Entre um whiskey e o seguinte, um veterano da Segunda Guerra recorda os corpos despedaçados no campo de batalha e os doces olhos castanhos que afinal não o esperavam. Um velho emigrante, regressado, por fim, à sua aldeia, descobre, triste, entre uma caneca de cerveja preta e a próxima, que os seus amigos de infância haviam já todos partido. Outro velho, no leito da morte, entre um jarro de ponche e o a seguir, vê anjos e demónios à beira da cama, na companhia dos seus dois cantores de ópera favoritos, recordando com saudade os bordéis republicanos que visitava aquando da Guerra Civil de Espanha.
Além do humanismo e humor com que pincela as suas decadentes personagens, há sempre um forte sentido histórico a engrandecer as suas misérias, seja a guerra, a luta pela independência ou a diáspora dos irlandeses pelo mundo.
Mas a sua gente amaldiçoada não se move apenas em bucólicas tabernas irlandesas. Por vezes, habitam lugares bem mais esquálidos, que MacGowan conhece em primeira mão: os bairros manhosos frequentados pela underclass londrina. É devastadora a história do miúdo irlandês que chega a Londres cheio de sonhos e se vê obrigado a prostituir-se para sobreviver. MacGowan nunca julga as suas personagens, encontrando uma dignidade poética mesmo nas vidas mais sórdidas.
O disco seguinte, If I Should Fall from Grace With God, teria canções mais conhecidas e com maior sucesso comercial. Mas nunca como em Rum, Sodome & the Lash as suas histórias foram tão desesperadas, tão comoventes, tão humanas. Deus e o diabo jogando às cartas na taberna que temos no peito.