* Nota prévia à reportagem de Abraçaço ao Vivo, no Coliseu.
O dia de ontem trouxe-nos uma feliz coincidência: o documentário Tropicália, de Marcelo Machado, foi editado em DVD, e Caetano Veloso deu-nos um enorme abraçaço, na sala maior da nossa capital. Dose dupla de encantamento, como facilmente se perceberá, para o autor destas linhas. Num mesmo dia, o Caetano de 67 e o Caetano de 2014 cruzaram-se em imagem e som, materializando-se de formas diferentes. Nada que espante num ser tão camaleónico como é o mestre baiano do tropicalismo. Curioso é ainda verificar que a memória fílmica e a imagem presenciada no palco do Coliseu, estão ambas bem infladas de vida, e se o tempo avança do documentário de há 40 e tal anos para o concerto de ontem, no concerto houve momentos em que o tempo recuou até aos anos 60 da vida musical brasileira. Viajar no tempo não é para todos, mas pode acontecer quando menos se espera.
Caetano Veloso é um cliente habitual da sala da Rua das Portas de Santo Antão. Para além disso, também é muito cá de casa. Foi nesse mesmo local, tinha eu 16 anos, que o vi ao vivo pela primeira vez, e desde aí mais de dezena e meia de outras vezes pude encontrar-me com o talento do cantor de Santo Amaro da Purificação. Ontem, por volta das 21 horas e 50 minutos, pude rever a mestria e o engenho de um homem que há muito se dedicou a fazer-me feliz. Essa imensa alegria, uma vez mais, aconteceu. Desta feita, como em tantas outras, de forma quase física, num imenso abraçaço sonoro que ainda trago, e trarei por longo tempo, nos ouvidos e no coração. Caetano é um artista único, sem par na história do pais irmão. Foi sempre mudando, sempre desdobrando o seu talento, multiplicando-se em várias vozes, em vários ritmos, desde a bossa nova até ao rock. Caetano nunca se conformou com a história que foi escrevendo, nunca se repetiu, e sempre soube mostrar “o avesso do avesso do avesso do avesso” do génio que ainda segura bem alto, na ponta do violão e na força estranha da sua voz.
Caetano iniciou em Lisboa a digressão europeia do já premiado Abraçaço, e nele resolveu incluir quase todas as canções do disco de estúdio com o mesmo nome. Daí não ser espanto para ninguém, que os sons iniciais do concerto tenham sido os da canção “A Bossa Nova é Foda”. Depois, na presença da sua Banda Cê (que o acompanha desde Cê, disco de 2006, até ao presente momento) foi desfiando um bonito novelo de canções mais antigas, algumas perdidas no tempo e nas vozes de outros intérpretes, como são os casos de “Triste Bahia” (de Transa, álbum maior do exílio londrino dos anos 70), ou “De Noite na Cama” (de Temporada de Verão, Ao Vivo na Bahia), e de “Mãe”, homenagem a Dona Canô, falecida em data natalícia do ano de 2012, que se tornou conhecida na voz de Gal Costa, no registo ao vivo do show Recanto, e que em boa hora Caetano resolveu torná-la ainda mais sua do que já era, ou de “Reconvexo”, até agora apenas cantada pela sua irmã Bethânia no álbum Memória da Pele, de 1989. Assim, tocando em vários períodos da sua carreira, Caetano ia avançando no show, mas também recuando até momentos passados, que mesmo distantes, estão sempre próximos de quem o conhece e segue há mais de 30 anos. Foi muito bom ouvir “Coração Vagabundo” (de Domingo, disco feito a meias com Gal Costa, estreia absoluta dos dois baianos, em 1967), “Escapulário” (de Jóia, 1975), “Você Não Entende Nada” (de Caetano e Chico Juntos e ao Vivo, 1972), “Eclipse Oculto” (de Uns, 1983) e “A Luz de Tieta” (de Tieta do Agreste, trilha original do filme de Carlos Diegues, 1996). Percorrendo ritmos diferentes nas composições que nos apresentou, podemos afirmar que o show Abraçaço teve duas partes distintas. Uma primeira mais contida e intimista, quase triste em certos momentos, e outra mais vibrante, mais pulsante, mais rockeira, se assim quisermos colocar a questão. A este propósito, não será disparatado referir que algumas das novas bandas de rock que por aí pululam, muito ganhariam em ouvir o que Caetano tem produzido ultimamente, sobretudo na sua trilogia feita com a Banda Cê. Que portentosa é a guitarra de Pedro Sá, por exemplo! Que talento puro, meu Deus!
O concerto terminou por volta das 23.15 horas. No momento em que Caetano cantava a icónica “Força Estranha”, veio-me à memória o facto de ter sido ali, naquela mesma sala, que o vi atuar pela primeira vez. Entre esse longínqua data e a noite de ontem, como já sublinhei, passaram cerca de 30 anos. E ali estávamos ambos, mais uma vez, cúmplices do momento. Ele sem saber da minha existência, eu venerando a sua há mais de três décadas. Ontem, no final do concerto, eu era a pessoa mais feliz da sala. Devo essa imensa alegria ao homem que mais uma vez nos brindou com o seu ímpar talento. És mesmo o maior, Caetano!
Duas notas finais. A primeira para registar a excelência dos músicos que acompanham Caetano: Pedro Sá (a sua guitarra merece, muito justamente, uma segunda referência neste texto), Ricardo Dias Gomes (baixo e teclas) e Marcelo Callado (bateria) são insuperáveis nas funções que desempenham, e um espetáculo dentro do espetáculo maior que é Abraçaço. Uma última palavra para o sóbrio cenário de Hélio Eichbauer, que acompanha Caetano desde que o baiano levou ao público o show Estrangeiro, no princípio dos anos 90. A simplicidade dos meios em palco, as simbologias presentes perante o fundo negro e o jogo de luzes, e a reprodução de obras do pintor soviético Kasimir Malevich acrescentam ao show uma aura de modernidade, que assenta bem a um espetáculo que percorre várias décadas, mas que tem um travo de futuro por descobrir. O que fará Caetano quando regressar ao estúdio de gravação? Nada que não saibamos há muito: arte maior! Resta-nos apenas esperar…
ps: dava tudo para ter aquele maravilhoso violão branco!
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(Fotos: olhos(«Ä»)zumbir)
Alinhamento:
A Bossa Nova é Foda
Coração Vagabundo
Quando o Galo Cantou
Abraçaço
Parabéns
Homem
Um Comunista
Triste Bahia
Estou Triste
Odeio
Escapulário
Funk Melódico
Alguém Cantando
Quero Ser Justo
Eclipse Oculto
De Noite na Cama
O Império da Lei
Reconvexo
Você Não Entende Nada
1º encore:
Nine Out of Ten
Leãozinho
Luz de Tieta
2º encore:
Força Estranha