
Arto Lindsay encerrou ontem, no Centro Cultural de Belém, a digressão europeia que levou a cabo este ano. Veio com muita coisa boa na bagagem. Para além dos músicos de excelente qualidade (aquele que já foi considerado o melhor baixista do mundo, Melvin Gibbs, lá esteve em palco mostrando os seus superlativos créditos) trouxe as suas canções mais antigas, as mais recentes também, e canções de outros artistas que sempre admirou. O espétaculo foi idealizado à maneira do último Encyclopedia of Arto, best of com disco bónus ao vivo, trabalho saído este ano, e do qual o Altamont vos deu conta há pouco tempo atrás. Lisboa tem sido uma cidade com portas abertas para Arto Lindsay. Já por cá passou várias vezes e eu, que há muito o admiro, só ontem tive a sorte de poder assistir a um show seu. Foi a primeira vez, o que torna sempre tudo mais especial, seja na música ou em quaisquer outras coisas boas da vida.
O concerto começou com “Personagem”, e logo se percebeu que as roupagens que conhecemos dos seus temas não eram as mesmas. Roupagens mais pesadas, de inverno, muito diferentes das dos registos discográficos. Pouco depois, “Simply Are”, e de novo a ideia de uma versão mais solta, mais a gozar o espírito do momento. Longe vão os tempos da No Wave , é certo. Mas, apesar da distância, ainda há muito dos sons abrasivos dos DNA em Arto Lindsay. A sua guitarra louca e incapaz da mais breve normalidade não deixou de ser o que era. Dissonantes sons marcando ritmos e saindo deles com toda a facilidade do mundo, das cordas da bonita guitarra azul que tantas vezes o acompanha vão ecoando gritos, queixumes, suspiros e outras fraquezas. Em todas as canções é assim. Lindsay nunca se livrou do seu particular instrumento durante todo o show. A acompanhá-lo, dando-lhe o sentido melódico e construtivo que não tem nem pode ter, estavam o órgão de Paul Wilson (vibrante, o músico, visivelmente satisfeito) e o baixo de Melvin Gibbs, sempre cool e competentíssimo. As canções iam continuando o seu roteiro, e até “O Mais Belo dos Belos” (de Daniela Mercury, que se assustaria com esta versão, se pudesse ouvi-la) apareceu, embora apenas como introdução à conhecida “Illuminated”. Depois foi a vez de “Erotic City”, de Prince. O ritmo balanceado do samba ia ganhando espaço com as percussões de Merivaldo Paim e com a bateria de Kassa Overall. Tenho, para mim e só para mim possivelmente, que foi o samba que salvou Arto Lindsay, e que lhe deu força suficiente para a carreira a solo que vem construindo de forma muito significativa há já algum tempo. O movimento No Wave e o vanguardismo dos caminhos trilhados com Peter Scherer, no tempo dos Ambitious Lovers, não eram tudo. Faltava o toque da dupla vivência geográfica na música que ia fazendo. Como se sabe, Arto Lindsay foi ocupando os dois hemisférios da grande América, tanto a norte como a sul, durante bons e largos anos da sua vida. Aliás, até aos dias de hoje. Isso foi decisivo em tudo, até no jeito de usar a voz. Malandro, quando canta parecendo que não quer cantar, dizendo as palavras pela metade, optando claramente pelo que representam foneticamente, e não tanto pelo que significam no conjunto dos textos cantados. Assim se passou pouco mais de uma hora. Os músicos agradeceram os aplausos, saíram, e pouco depois voltaram para um único encore de duas canções: “Imitação” (de Batatinha) e “Jardim da Alma”.
Não terá sido um concerto memorável, mas isso também nem sempre acontece, convenhamos. O que aconteceu foi bastante bom e deixou em mim a vontade e o desejo crescentes de ouvir um disco novo de Arto Lindsay, coisa que já está em falta há muito tempo. Arto Lindsay, convém perceber, é mais um artista do que um músico. É, e sempre foi, um vanguardista. Por isso valerá francamente a pena escutar a fórmula estranha desta sua maneira de fazer música: rock that meets jazz that meets bossa that meets samba that meets whatever the fuck that happens on stage sempre que Arto por lá passa. Ontem passou por Lisboa, e passou com distinção. Bravo!
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Fotos: Francisco Fidalgo