Pharmakon corporiza-se novamente em tensões que se excluem para lá do que é tangível e humanamente possível: restabelece-se à parte dos seus outros registos visceral e possante.
As manifestações artísticas de Margaret Chardiet – Pharmakon – extravasam para lá do que é expectável e esperado, causam-se à intolerância gratuita, reservando-se a um estado desviante no qual o negrume humano e a doença coexistem sincronicamente em par de uma frieza ruidosa em ritmos mecânicos e acidentados.
Pharmakon incita, através de um registo dicotómico no qual o corpo e a mente contrastam, à meta-realização de um sentido sonoro catabático. A transcendência é assumida em ritmos viscerais e desviantes, estruturando-se na plasticidade elástica da sua voz e na aspereza cirúrgica dos lances sonoros industriais. Corporiza-se no som em que se assume, adianta-se a uma terceira consciência sonora distanciada daquela em que se tem e da que é percepcionada. A empatia é procurada através de rudimentos ressonantes e orquestrações repetitivas de conjuntos de notas singulares: industrializa-se em ritmos histéricos e nevróticos.
Em Bestial Burden, lançado em 2014, estrutura-se em torno da aspereza ruidosa e na sua emancipação quase febril em arremessos que enegrecem e distorcem as fragilidades humanas. Antecede-lhe Abandon, lançado um ano antes, que se estabelece com base na repetição sonora – drone layers – que se permitem à resolução e exortação do seu sentido pessoal.
Presentemente, Contact instiga à cissão entre os dois hemisférios – corpo/mente -, dilacerando-os em torno de ritmos exasperantes e abrasivos, permitidos a uma segunda realização acima do som e do próprio sinal sonoro. Os compassos industriais causam-se a uma letargia de natureza indefinida, restam-se ao tímido silêncio pela impossibilidade sonora tangencial da convalescença: permitem-se ao restabelecimento da sanidade num estado intermédio entre tudo e tudo.
Através do distanciamento da experiência pessoal de Chardiet permite-se a emergência da verdadeira expressão empática entre sentidos vários libertos do dano e da pena. Os ritmos maquinais ajeitam-se aos sintagmas repetitivos, confundindo-os, sedando-os energicamente. A resolução faz-se por meio de um sinal exasperado entre gritos acutilantes e desconcertantes e a própria exortação física – qual expurgação – do entre-espaço percorrido entre a emancipação e a retracção.
Dramatiza-se na procura de significados cujo alcance não é imediato e instantâneo: a relação empática nunca se estabelece-se linearmente, antes, fragiliza-se e fustiga-se na alteridade para depois empunhá-la, apelando-a. A tensão é sintomática deste complexo psicológico de procura salvífica e testemunhal: a natureza sensível do material sonoro é distorcida.
Chardiet eleva-se persistentemente, reservando-se à perseverança ruidosa e sinestésica – proíbe-se a definhar: a morte e a apatia são a recondução de um estado febril. «We cannot transcend all of our instincts», mas, ainda assim, insiste, autoflagelando-se até que pela forte alternância entre os dois hemisférios humanos se livre do embuste, do enredo e da mentira e, com isso, se tenha purificada ante a sua própria existência.
Em Contact, Chardiet esgota a voz que lhe é própria, fustiga-a na aspereza viúva do sem-sentido humano. Em «Transmission» os gritos parcamente ouvidos apelam ao desespero, figuram-no. O álbum termina com «No Natural Order» que se assume distante e nervosa como um resemblance contestatário e de contra-prejuízo em causa própria e sem outra tutela que não a sua.
O delírio sónico é discordante, contrastante, áspero, ansioso e desvela o negrume existencial e a agudez das horas-mortas à parte dos corpos e formas orgânicas formuladas sobre juízos estéticos verticais definidos e categorizados.
O artwork apela à empatia: os dedos entrecruzados sobre o rosto vulnerável reproduzem-se entre as várias dimensões corpóreas do toque humano, incitam à dor e ao apego não-piedoso, mas humanamente discorrido em consciência. Esta representação pictórica anatómica revela as representações fantasmagóricas de natureza alegórico-metafórica do resgate que o ser humano faz de si mesmo. Comporta uma realidade não-conciliável, apenas visível que instruí através do carácter primitivo a que o ser humano se deve causar para se consumar na figura do outro.
Os movimentos intencionais distorcem e confundem, ressalvando da necessidade de auto-definição o sentido último de salvação da representação acústica do ritmo visceral – para lá de dentes e gengivas. Expõe-se à possibilidade de auto-engano, confronta-se solitária, assombra-se mediante a contemplação distanciada do estado doente em que se tem: transfere-se emocionalmente para a figura do outro, dele tornando-se cativa, imergindo-se repetitivamente por entre a carne, a cinza e os ossos humanos. Redime-se na procura pela definição: a ênfase recai sobre o estado límbico de idealização contrária do sentido salvífico – imerge-se numa prática oratória à parte, dessacraliza a figura inequívoca de deus, restando-se invariavelmente à íntima concretização do sexo humano fendido para lá dos dias maiores e dos sinais e lances de alcance variado.
Em «Nakedness of Need», música inaugural de Contact, dá-se um assalto à sensibilidade humana através de um desconcerto espaçado, mas, ainda assim, respirado entre ritmos electrónicos possantes e urros frugalmente clamados em causa e inquietação num timbre agudo e agoniado, a excitação deflagra-se: serve-lhe o corpo e a voz de interlúdio à convalescença.