Que os Capitães da Areia já sabiam fazer óptimas melodias, todas elas Verão, pop e gelados fresquinhos, já o sabíamos desde O Verão Eterno dos Capitães da Areia. O que não sabíamos, e que agora não podemos ignorar, é que eles não são só isso (e já seria bem bom). Vamos por partes.
Este recém-nascido 2015 traz-nos A viagem dos Capitães da Areia a bordo do Apolo 70. Sim, esse Apolo 70, o nostálgico e decadente centro comercial ali para os lados da lisboeta Avenida da República. Significativamente, teve o seu auge nos anos 80, essa década em que tudo parecia fresco, novo e possível em Portugal, quando o país ainda se cruzava nas esquinas entre a ingenuidade de um modernismo inventado e o «progresso» e a forma de pensar que os milhões e os ditames da então chamada CEE haveriam de trazer, na década seguinte. E isso é significativo porque este disco é, todo ele, uma gigantesca e fenomenal homenagem aos anos 80 portugueses.
Agora, que esteticamente, e não só, procuramos todos um rumo, o regresso à loucura plástica dos anos 80 é uma solução natural. Já não tão natural é isso ser feito, de forma tão explícita e tão confortável, por uma rapaziada que provavelmente nem era nascida quando estavam a eclodir os ovos maravilhosos que agora homenageiam desta forma.
É um disco conceptual, no sentido em que conta uma história. É, na boa tradição dos álbuns conceptuais, uma viagem no espaço, que começa com a transformação do Apolo 70 numa gigantesca nave. A partir daí, aí vão eles, e nós a correr atrás, entusiasmados desde o primeiro momento em fazer parte desta viagem intergaláctica. Muito nos remete para 10.000 anos depois entre Vénus e Marte, e não falta uma simpática participação falada do mestre José Cid, ele próprio uma estimada relíquia dos anos 80, não necessariamente pelos melhores motivos musicais. Mas desengane-se quem esperar aqui um disco de rock progressivo/sinfónico. O cosmos dos Capitães da Areia é feito de sintetizadores pop até à medula, não há solos de guitarra nem demonstrações de virtuosismo. E ainda bem, porque a força desta banda é outra: as melodias pop simples e viciantes, e uma frescura que nos faz ter saudades de ser adolescente.
Entre as dezenas de convidados deste disco temos os muito vintage Rui Pregal da Cunha, Lena D’Água ou Miguel Ângelo; temos os valores seguros contemporâneos como Mel do Monte ou Samuel Úria; temos os grandes viajantes Capitão Fausto; e temos até coisas incompreensíveis como Toy ou o extraordinário Bruno Aleixo.
Todo percurso é guiado pelos Capitães da Areia que, entre as músicas, nos trazem pequenos interlúdios falados que servem de fio condutor da narrativa. E é aqui, juntamente com um ou outro tiro ao lado nas colaborações, que este fantástico disco perde a capacidade de ser tudo aquilo que poderia ser. Começando pelos trechos falados, que são o que realmente mais incomoda: a tenra idade da rapaziada aparece exposta, com conversas e expressões relativamente parvas que nos fazem ter vontade de lhes ir dar um carolo (se eu ouço mais alguma vez aquela frase do «Ai sim? Sim. Ah!» de «As Maravilhas do Universo» apetece-me apagar todas as coisas boas que já disse e ainda vou dizer sobre o álbum). Os momentos Bruno Aleixo estão a mais, mais uma ou outra parvoíce do género, o que deixa antever uma mão demasiado solta na produção, que não os soube travar a tempo.
Todo o disco tem uma aura de excesso, de um doce óptimo mas que quase não resistiria à tentação de juntar mais um ingrediente, desde os mais previsíveis aos mais improváveis. É tudo um excesso que nos remete para os Capitães da Areia atirando ideias para o ar em estúdio e concordando em inserir tudo o que ia sugerindo, sem um critério que pudesse dar mais solidez ao conjunto.
Ainda assim, soam apenas a pecados da juventude, este excesso, esta pica, esta tusa de querer morder o mundo e arrancar-lhe um bom pedaço. Como não relevar, como não perdoar, quando somos presenteados com delícias pop tão certeiras e tão mortíferas como «A Célebre Batalha de Cassiopeia», «A Partida Para o Espaço» ou «Ájax»? E há mais, muitas mais, num saco de guloseimas onde encontramos mais gomas apetitosas de cada vez que lhe metemos a mão.
Um disco mais curto (são 75 minutos), com menos tralha e muito menos conversa traria como resultado um álbum mais coeso e, eventualmente, ainda mais conseguido. Mas a verdade é que essa contenção é incompatível com o delírio pop que os Capitães da Areia aqui quiseram fazer, tudo um excesso encharcado em Heróis do Mar, Sétima Legião e até uma pitada das Doce. Como exigir a uma banda que faz deste voluntarismo, deste entusiasmo e desta ingenuidade de caos criativo que limite exactamente as características que os fazem tão únicos?
O ano de 2014 foi estrondoso para a nova música portuguesa. O ano de 2015, com A viagem dos Capitães da Areia a bordo do Apolo 70, sobe ainda mais a fasquia que já era elevadíssima. Temos, perante nós, um dos melhores discos portugueses em muitos anos. Como diz um dos escritores do Altamont, «não há guilty pleasures, só pleasures». Ouvindo este disco, não podemos senão concordar, e dançar.
Um último conselho. Este disco vicia à primeira e pede audições repetidas. Será difícil resistir a um álbum tão guloso, mas é um crime consumi-lo enquanto Portugal vive debaixo de chuva e frio. Vou tentar esquecê-lo (ok, só ouvir uma ou outra música…) e finalmente metê-lo no carro quando o nosso querido Verão estiver entre nós, com todo o seu juvenil esplendor.
Porque duma coisa tenho a certeza: o Verão de 2015, pelo menos, foi feito para desfrutar a bordo desta esfusiante Apolo 70.