Medeiros, Carlos Medeiros, vozeirão imponente, foi autor de um disco de culto – O Cantar na m’incomoda – nos anos 90, à volta do cancioneiro tradicional dos Açores.
Lucas, Pedro Lucas, vários anos mais tarde, pegou nesse disco e meteu-o numa misturadora, sob o manto O Experimentar Na M’Incomoda, coberto de electrónica e loops a interagir com o canto ancestral.
Depois de dois discos com o Experimentar, Pedro Lucas cruzou-se com Carlos Medeiros começaram a trabalhar, de raíz, num disco conjunto. Pedro mais dedicado à parte musical, Carlos debruçado na dimensão lírica. Esta lírica é retirada de textos clássicos – de Cervantes e seu Quixote, a poetas açoreanos menos conhecidos no continente, como Armando Côrtes-Rodrigues, passando por ladaínhas insulares transmitidas de boca em boca e sem autor conhecido.
Os poemas são carregados de alma, dor, mar, jornada errante, destino por cumprir, desolação e regresso esventrado à casa de partida – e tudo neste disco decorre literalmente em Mar Aberto. A bordo de um navio de média dimensão vai um simples marujo, jovem, meio iludido e ignorante, pronto para deixar para trás o berço e cruzar os mares, lutando contra moinhos, ou gigantes, que apareçam. Com jeitos de cavaleiro, este marujo é destemido, porque não sabe ao certo ao que vai. Durante a viagem, há marés e ventos desfavoráveis, enjoos e alturas em que coloca tudo em causa, mas também há noites de lua cheia e mar tranquilo, noites silenciosas para escutar as dores do coração.
A jornada que faz é longa, parte de uma ilha perdida no Atlântico, quase esbarra na costa alentejana, desce ao estreito de Gibraltar, aporta no norte de África, prossegue Mediterrâneo adentro até à Mesopotâmia. Depois, tudo de volta para trás, até chegar a casa, totalmente esvaziado de emoções.
Esta viagem, adivinhamos-lhe o trajecto pela pela música que ecoa no navio, com o ribombar constante de tambores, linhas de baixo cheias de nevoeiro, guitarras em fraseados hipnóticos sempre ao despique com a voz, grave, intensa, imponente. Com marimbas e vibrafones ocasionais, percebemos a passagem breve por ilhas tropicais. Mas, quase sempre, em velocidade cruzeiro – há uma tensão constante em todo o disco, mas que raramente chega de facto a rebentar.
Toda esta música sai da cabeça de Pedro Lucas, açoreano radicado em Copenhaga, que já nos havia brindado com um dos projectos mais originais dos últimos anos – o Experimentar foi finalista na primeira edição dos Prémios Megafone – fundados em homenagem a João Aguardela, criador dos Sitiados e A Naifa, exaustivo buscador da tradição musical portuguesa, que fundia à músicalidade do seu tempo (acaso ou talvez não, entre os poucos convidados neste disco está Mitó Mendes, vocalista d’A Naifa)
Com o novo projecto, ao lado de Carlos Medeiros, Pedro Lucas dá menos atenção à experimentação e aprofunda meticulosamente o conceito iniciado com o projecto anterior. Mas onde o Experimentar podia soar a manta de retalhos, bordada a solo num quarto, Medeiros/Lucas cria uma linguagem sem igual no panorama nacional. O contemporâneo está nos sintetizadores ora mais subtis ora mais ostensivos. O ancestral está no canto de Carlos Medeiros. O que acontece no meio é uma construção, orgânica e instrumental, que funde de forma natural o tempo – outrora e agora – e o espaço – Atlântico luso, Ibéria árabe e Médio Oriente das Mil e Uma Noites.
Medeiros/Lucas é, portanto, o projecto mais interessante da actual música portuguesa. Um caldeirão enorme onde cabe um sem número de elementos e ingredientes que remetem para uma portugalidade anterior à nacionalidade, quando esta terra era populada por tribos.