Deve ter havido nos anos 90 uma qualquer substância estranha a correr nas torneiras de Hampshire para lá terem nascido as duas meninas bonitas da nova folk inglesa: Laura Marling e Marika Hackman. As comparações devem ficar contudo por aí: Marika não é a nova Laura Marling nem nova coisa nenhuma; é ela por direito próprio da cabeça aos pés. Que tenha uma personalidade artística já vincada com apenas vinte e um anos é um mistério que ainda ninguém consegue explicar muito bem.
Com a sua cara bonita de modelo teenager, não nos espantamos que tenha sido a Burberry a descobri-la primeiro; mas hoje quer descolar-se dessa ligação ao mundo da moda, pouco consentânea com a sua nova condição de artista folk. Quem for a um concerto seu, intui esse facto: veste-se de uma forma ostensivamente simples, com calças de ganga, uma t-shirt cuidadosamente escolhida ao acaso e uma deliberada ausência de maquilhagem.
Em 2013 lançou este seu primeiro disco, o mini-álbum That Iron Taste (com a suas sete canções e os seus vinte e dois minutos, é grande demais para EP e pequeno demais para álbum). A produção foi feita a duas mãos, com o seu mentor folk Johnny Flynn a produzir duas canções (“Mountain Spines” e “You Come Down”) e Charlie Andrew – o mago que pôs os Alt-J a ganharem um Mercury Prize – a gravar as demais.
A abordagem dos dois é radicalmente diferente. Flynn faz uma produção acústica e old school (os arranjos de “You Come Down” devem muito a “El Condor Pasa” de Simon & Garfunkel),– tentando não abafar demasiado a voz de Marika. Andrew, pelo contrário, não resiste a moldar profundamente as canções à sua imagem e semelhança. Em “Plans” e “Retina Television” (esta última feita sem nenhum instrumento para além do corpo de Marika: harmonias de voz, estalidos nos lábios, ranger de dentes…) ainda conseguiu respeitar o feeling folkie das canções originais, mas nas restantes manda a folk para as urtigas e enche as canções com as suas inconfundíveis batidas electrónicas, percussões bizarras e loopings obsessivos, numa continuidade estética indisfarçável com o que antes fizera no álbum de estreia dos Alt-J. O génio inventivo de Andrew é inegável mas quem ouvir no Youtube as versões cruas – só viola e voz- das canções de That Iron Taste não pode deixar de sentir que algo daquela pureza original foi traída pelo excesso de produção. Talvez Charlie Andrew seja um produtor talentoso demais para produzir artistas folk, não sei; ou talvez esteja Marika, simplesmente, a empurrar as fronteiras da folk para mais longe, ajudada por quem percebe do assunto.
Independentemente da posição que tomemos a este respeito, uma coisa é certa: as canções de Marika Hackman são tão especiais que sobrevivem ao que quer que se façam delas. A progressão de acordes foge aos habituais lugares comuns, a transição entre versos sombrios e refrões luminosos é inesperada, as letras são deliciosamente macabras, com um humor negro encantador: “Have you seen my nose?/I cut it off last night/let’s just hope it grows/I’d hate to look afraid”, canta Hackman em “Cannibal”. Dark folk seria então um rótulo redutor para classificar estas canções cuja melancolia e morbidez é sempre esbatida por alguma distanciação cómica, um pouco na esteira de Sylvia Plath e Kurt Cobain, de quem Hackman é confessa admiradora. Os próprios arranjos vão no mesmo sentido: “I’ll Borrow Time” é tão gótica como desengonçada, um misto de Swordfishtrombones com a banda sonora da “Noiva Cadáver”.
A história de Hackman não acaba aqui porque entretanto já lançou o EP Sugar Blind, um disco soberbo que aprofunda ainda mais a renovação da folk iniciada com That Iron Taste. Com estes dois grandes pequenos discos já na bagagem, são grandes as expectativas sobre o primeiro longa duração, que deverá sair este ano. Venha ele e os demais: com vinte e um anos de idade, tem apenas a vida inteira pela frente.