O post-punk revival, em ascensão quando da concepção da banda, fim de século, distribuía sarcasticamente pelo público pelejas entre a vertente mais irreverente, vulgo The Strokes, vulgo The Libertines, e a vertente mais texturada, consequentemente mais ornada e laboriosa, vulgo Interpol – seja talvez o termo incompleto e desnecessário para a descrição, «pelejas», talvez «picardia» se coteje e sirva melhor. São, ou melhor, foram, portanto, atritos com responsabilidades unanimemente atribuídas ao valor estético e social do hype, essa indefinição da moda, do gosto responsável e arrogante, que vulgarizou nas bandas de rótulo análogo ao das primordiais do estilo um sentido transparente ao público de pretensão e altivez; enfim, a relutância e o cepticismo construídos à volta das personalidades do movimento de ressuscitação tomavam acções pejorativas aos que viessem depois, mero infortúnio cronológico, no entanto poucas são as situações que nisto não derivam.
Esta questão sociológica explica substancialmente a ausência inicial das spotlights dos Interpol. Assim, é admissível tomar a palavra da conclusão, essa que diz que a própria existência dos Interpol se coaduna com o género a que se associam e, largas dadas à musicologia, não é insensato afirmar que o desenvolvimento do estilo que estilizou o post-punk revival, obviedade implícita, neste caso, protagoniza um certo paralelismo com a história da banda; quando o post-punk era ainda um infante irrequieto e comercialmente desconhecido, pensemos nos Interpol aquando da sua formação, e depois quando resultou a descendência do estilo no termo «revival» e posterior relevância comercial, pensemos na obra primière dos Interpol, Turn on the Brights Lights, são esses os «quandos» da analogia a que devemos prestar contas.
Formados em 1997, apenas com o lançamento deste LP lhes achou a crítica o merecimento de menção e divulgação. Em rescaldo, a Matador teve a sua quota-parte, que resultou numa (quase) mão-cheia de trabalhos editados, culminando, por agora, no recém-lançado El Pintor. Assim, em cálida e contemplativa retrospectiva, o álbum de estreia foi epítome e exórdio da elaboração sonora que veio a tomar a signature da banda — porventura inigualável prévia e posteriormente —, provém daí a distinção perante o restante, a discriminação do grupo perante a amálgama ininteligível do panorama musical em questão, que evoluiu para as jams de Antics, não se deixe por dizer que se refere a «C’mere» e a «Evil», para a diversidade de Our Love to Admire, para a lânguida gravidade de Interpol, num exemplo lacónico.
Lacónico é também o título do início. «Untitled» reflecte a indefinição superficial, é de facto para levar à literalidade do termo, «reflecte», apenas o nome é suficientemente amplo, já o que se ouve é o prelúdio das melífluas e blandícias que hão-de caracterizar os quase 50 minutos, e este quase diz mero respeito ao tempo, porquanto o récord não é quase nada, não é quase todo, é a quantidade devida do que deve ser. Faixa como esta de introdução oblitera qualquer ideia de elipse no seguimento de TotBL, «I will surprise you sometimes, I’ll come around» é indício de que Paul Banks, o vocalista, procura dinâmica, fluência de ideias, embora perceptível também seja o obscurantismo lírico característico da composição dos Interpol; que a tolerância alheia se nos ajunte e nos permita afirmar isto sem que uma sinédoque despercebida desfigure o significado que tenhamos encontrado na voz do frontman.
São de discreta tensão, os vocais, que permitem um resguardo íntimo, um comedimento intencional especialmente presente em «NYC», quando os meandros das cordas se estabelecem por fim, é Denger no baixo, Kessler na guitarra, já a sonoridade estava definida, é agora altura de a descrever. É de uma linguagem que nunca grita. Sucintamente, é de uma linguagem maciça que nunca grita, louca, tensa, mas que dispara o que tem a dizer pela antítese; por miúdos, é a quentura dos graves que confronta a convulsão dos agudos, e o degrau que daí brota propende a fluência do som como bem entende, leva a melancolia dos antepassados atrás, Unknown Pleasures é chamado ao dever e preenche a atmosfera intensamente. Obviamente a referência não poderia cair no oblívio, voltamos à conversa do post-punk, decerto muito do desespero existencial de Ian Curtis ainda rebate e ecoa em «Hands Away», e.g., e por vezes foge das texturas aveludadas para a rawness metálica, brilhante, áspera das «Obstacles». Pelo caminho, o sarcasmo não é parte constituinte de TotBL, é o adorno cuidado que o permite, esta corpulência de som cheio tem as suas consequências, espasmos de lascívia, em que «Roland» é exemplo que baste, «He severed segments so secretly, you like that» é exemplo que baste da contenção de Banks, fodeu-me todo e eu nem me dei conta, e é agressivo, cru, mas não demonstra volatilidade pelo meio, e daqui não tiras melífluas nem blandícias, que é o «post» antes do «punk», toma lá personalidade em bruto, mais uma das facetas, o que lhe queiras chamar.
Culmina o récord em «Leif Eriksen» que, junto a «PDA», demonstra a angularidade e a densidade das cordas, o frenesim do ritmo. Acima de tudo, prova do seguinte são as faixas referidas, é um álbum sedutor. Implica uma dádiva de nós, o processo de confiança é moroso e suspeito, indubitavelmente inevitável, mais vale baixar as guardas agora, a primeira vez estranha-se, a segunda entranha-se; conclui-se portanto que não se remete a existência da banda para o hype, é esta um ilhéu independente e arrogante para o restante arquipélago. A percussão rola, há essência, vive-se o caos por meio da precisão, e não incorramos no erro de lhe chamar ordem, que além de distopia é renunciada pela efemeridade da banda, contrastante com a significação temporal inerente a Turn on the Bright Lights; enfim, é 2014 e ainda persuade.