A maioria dos artistas fica incomodado com o rótulo de “obra autobiográfica”, e muitas vezes com razão, porque o termo é usado para caracterizar uma obra que espelhe fielmente a vida do artista – o que é, como sabemos, uma impossibilidade. Mas Earl Sweatshirt desafia-a até onde pode – não acreditamos que tudo o que nos diz se passe exactamente assim, ou que seja um retrato fiel da sua vida, mas não temos dúvidas que há uma honestidade absoluta neste disco: uma autobiografia construída com seriedade. Ele próprio o corrobora:
If “I Don’t Like …” wasn’t tight — like, actually wasn’t tight, not debatable, not good — then I would have to go, like, kill myself. Because I put my whole life into it. When you put your whole life into something, and it’s not good, that’s a reflection of you. (Los Angeles Times)
O novo disco de Earl Sweatshirt – e o que o rapper americano considera ser, na verdade, o seu primeiro, o que nos diz muito mais da juventude e imaturidade de Earl Sweatshirt entre 2011 e 2013, altura em que saiu Doris, que de I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside -, tem alguns dos temas correntes da maior parte do hip-hop americano: a auto-confiança, o dinheiro, as mulheres, as festas, o álcool e a droga.
Mas essa é uma parcela menor do disco – como se Earl nos quisesse dizer que é pouco importante, ou que a quer até em dados momentos destruir (como o próprio afirmou recentemente, o que o salvou foi ter visto o seu ego ser destruído com a ida para Samoa – onde foi enviado pela mãe, ainda menor, rumo a uma escola de miúdos em risco). Há um Earl Sweatshirt que emerge, maduro mas frustrado pela pressão de crescer, contando-nos os demónios com que vive – algo visível nas palavras mas também nos beats, densos, repetidos, feitos de claustrofobia e pesadelos, descarnados e enegrecidos, que servem de base a uma voz forte e segura.
Em “Faucet”, por exemplo, a sua amargura é clara, expressa sem subterfúgios ou auto-comiseração. A dado momento, canta-nos “My days numbered / I’m focused heavy on making the most of ‘em”, para mais tarde nos cantar “I don’t know who house to call home lately / I hope my phone break, let it ring”, com uma alusão posterior ao “tempo naquela ilha”. E não seria expectável que a distancia física e o exílio momentâneo criasse um exílio interior, que tem de “trabalhar” (não fosse a dificuldade de comunicação com os outros aqui e ali abordada por Sweatshirt neste álbum)? Que surgisse neste álbum amargura, frustração, altos e baixos, alucinações?
“Off top” é outro dos temas com mais qualidade de um disco praticamente sem pontos fracos, onde encontramos versos tão bons como “Raised up where every mouth that speak the truth get taped shut”, para de seguida nos atirar (a nós e, acrescente-se, a si mesmo) com “What a bastard that baby was / Little mad nigga missing dad, never praying much / Right around the same time his grandma drank a bunch / take the bus, take a nigger’s seat like it was made for me”
Mas o grande momento é “Grief”, seguramente um dos temas do ano (e um dos melhores dos últimos anos). É impossível seleccionar um excerto, ou um verso: toda a canção é Earl Sweatshirt com voz narcótica a apontar o dedo aos outros, a discorrer sobre “as cobras” que a mãe o ensinou a “ler pelo olhar” e a não se vir a tornar. Todos os que quiserem fazer hip-hop a sério, sendo diferentes da maioria (para melhor), têm de ouvir “Grief” e aprender alguma coisa. Quando Earl canta “I’m a target so it’s hard to even eye me in ‘em / If he ain’t dying for me, then I ain’t riding with him / There’s no time for that”, não há como não ficar rendido ao que ele tem para dizer, num meio que luta constantemente – como a maioria dos outros – contra a homogeneização.
I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside é desafiador e é crítico, mas olha para si como olha para os outros: sem complacência nem floreados, sem preconceitos e com clareza. Enquanto dura, pelo menos, há que aproveitar tudo o que possa servir as canções; e como Earl nos avisa, “I just want my time and my mind intact / when they both gone, you can’t buy ‘em back”.
O disco é um manual de auto-conhecimento e de sobrevivência, lírica, métrica e melodicamente coerente. Se este é o primeiro disco que Sweatshirt presume poder assumir na totalidade quando olhar para trás, o futuro parece claro: continuar a limpar as impurezas e trazer o essencial à tona, cuspi-lo aos nossos ouvidos. Não façam dele um poser nem uma estrela: é, hoje, um adulto que usa os seus conflitos e o seu Passado para nos atirar com aquilo que quer que saibamos: o que ele é no contexto em que vive, e que papel temos nós nisso (a dada altura canta “Disdain for the law since a fucking child”; e que responsabilidade temos também nós nisso?). Fá-lo já com uma sinceridade, com uma originalidade e com uma uma falta de vergonha que convence.