O Diabo na Cruz não tem pátria: habita aquelas terras de ninguém onde diversos territórios confluem. Se para a maioria as fronteiras são zonas perigosas sitiadas pelos «diferentes», para os Diabo são mais do que bem-vindas: formam o próprio habitat. Onde a música popular portuguesa colide com a «pop» anglo-saxónica, onde o campo esbarra com a cidade, onde o antigo embate com o novo, onde a estética dominante choca com outros padrões de gosto, é onde o Diabo gosta de estender a sua esteira. Ora, como veremos, o seu terceiro disco é muito diferente dos registos anteriores, quer na sonoridade quer no conteúdo. É possível uma banda mudar tão profundamente sem trair a sua identidade? Será esta a pergunta do milhão de dólares, o fio de Ariadne que nos permitirá sair – esperamos – do labirinto deste texto.
O novo disco é menos rock e mais pop – o que lhe falta agora em guitarra sobeja depois nos sintetizadores. Pode-se por isso esperar menos euforia punk nos concertos? Não o creio. As canções levantam na mesma sem o viagra do riff, como se o Diabo na Cruz – qual Obélix do punk popular português – tivesse caído num caldeirão de riffs quando era pequeno. «Saias», por exemplo – ode maravilhosa à sensualidade feminina – é um clássico instantâneo, entrando para a história da música popular portuguesa à primeira audição. Não se pense porém que todas as canções têm orelhas pop gigantes; a sequência «Verde Milho», «Mó de Cima» e «Azurvinha» assegura o devido contrapeso anti-pop, açúcar e limão doseados na perfeição. Já «Moça Esquiva» é o ingrediente esquisito, aquele que dá um toque diferente e especial ao menu de degustação. Com o seu sintetizador manhoso, e o seu sample de gosto duvidoso, é uma reflexão deliberada sobre o lugar que o mau gosto deve ocupar na música considerada credível, não só pelo prazer estético kitsch que proporciona mas também pelo seu poder de questionar as normas do gosto – intolerantes por definição.
O surrealismo popular dos discos anteriores – muito elegante na forma mas de difícil decifração – é agora abandonado em favor de uma abordagem mais directa de escrever canções: menos rodriguinhos, mais chutos à baliza, marimba lá para a nota artística, é preciso é que a mensagem marque golo. A mensagem é profundamente política, apesar de não o parecer. Roque Popular era sombrio, um espelho dos tempos cinzentos pós-troika. Mas Jorge Cruz acabou por problematizar esse queixume tão português, que acaba tantas vezes por reforçar o mal que pretende esconjurar. Por isso, o novo disco é deliberadamente optimista, uma afirmação inequívoca de vitalidade, como se gritassem ao mundo: estamos vivos, cacete, bora agarrar a vida bem pelos cornos, nem pensem que a rameira da troika vai meter as suas unhas peçonhentas nas minhas costas.
Há também uma mudança na geografia das canções, um claro deslocamento do campo para a cidade. A Lisboa – da Rua do Salitre, do Copenhaga, do Maria Vitória – é agora o pano de fundo onde as histórias acontecem. O diálogo entre o rural e o urbano persiste mas é agora disposto num tabuleiro bem diferente. Virou! e Roque Popular são a cidade que há no campo, o puto citadino a dar tudo nas festas da terrinha, o «Meu Querido Mês de Agosto» convertido em mp3. Diabo na Cruz é o contrário: o campo que há na cidade; o nosso verniz provinciano a estalar no momento mais cosmopolita; a tensão entre as peneiras da pseudo-sofisticação urbana e a rudeza despretensiosa das nossas raízes rurais. Numa fórmula: todo um manual sobre a difícil relação que nós, portugueses, temos com as nossas origens.
Todas estas mudanças atraiçoam a sua identidade? De maneira nenhuma. A banda de Jorge Cruz continua a fazer o que sempre fez e tão bem sabe fazer: navegar pelas fronteiras proibidas da pop, mapeando os lugares dos interstícios musicais nunca antes cartografados. Acontece apenas que as linhas de demarcação são afinal muito mais espessas do que julgáramos, pelo que, disco após disco, a banda vai-nos conduzindo a novos territórios raianos. Que o Diabo na Cruz continue assim por muitos anos: provocador, inteligente e com grandes canções pop.