Inventividade luminosa. Ou, se quisermos, reciclagem com brilho próprio. Estas poderiam ser etiquetas para Carne Doce, banda de Goiânia, que no passado abril de 2013 lançou um EP de nome Dos Namorados. Em pouco mais de 17 minutos, Salma Jô e Macloys Aquino (casal, de facto, da primeira encarnação da banda) fizeram um pequenino milagre sonoro, que é delicioso ouvir. Talvez dissesse melhor, e com mais propriedade ainda, que é delicioso provar, atendendo ao nome artístico da dupla.
O som é puro, fresco e novo. Poderão ser esses, aliás, os atributos de quaisquer outros milagres, por isso acho mesmo que assentam bem na descrição feita. Depois desse primeiro registo, a dupla-cabeça do projeto uniu-se a João Victor Santana e Ricardo Machado, peças importantes da também importante banda Luziluzia, que bem poderá vir a ganhar no Altamont, a seu tempo, algum destaque. Mas não nos adiantemos a esse mesmo tempo, uma vez que o primeiro longa duração de Carne Doce só será conhecido lá mais para a frente, embora ainda em 2014, e fiquemos por agora pelas impressões positivas (puras, frescas e novas, não se esqueçam disso) de Dos Namorados.
Se o ouvinte gostar da voz de Salma Jô, de uma agudez pouco normativa, mas sugestiva ao ponto de me fazer recordar, vá lá saber-se a razão, a voz feminina dos geniais Mutantes (Rita Lee nunca foi uma poderosa cantora, mas há qualquer coisa dela no tom de voz mais pujante de Salma), então gostará de Carne Doce, e ficará satisfeito ao ouvir as seis curtas canções que dão corpo ao disco. A minha favorita talvez seja “Cliché Deprê”, o quinto tema a entrar em campo, sendo que aqui já a lembrança é outra, e Luiza Mandou Um Beijo (a voz de Flávia Muniz, sobretudo) vem-me à cabeça, embora apenas em esparsos momentos. Mas como todas as canções merecem audição atenta, deixo-vos os nomes das outras: “Cavalgada”, “Fruta Elétrica”, “Dignos”, “Dos Namorados” (de apenas 1 minuto e 21 segundos, mas deliciosamente boa e espertíssima nos versos cantados), ficando para o fim “Corrente”, com um certo sabor a tango. Em todas essas canções há rasgos de originalidade, embora ao mesmo tempo possamos perceber indícios de ideias sonoras mais antigas (como não nos lembrarmos, por exemplo, de Novos Baianos?).
Outra das virtudes que encontro neste Dos Namorados é algum gosto experimentalista, que faz com que a produção sonora de Salma e Macloys se aproxime de uma corrente da música popular brasileira há muito posta de parte pela generalidade dos artistas mais conhecidos. Isso parece-me certo, tanto nas composições, como nas letras cantadas. Não há margem nem espaço para lugares comuns neste Dos Namorados, e essa é uma tremenda virtude do disco. Há, na verdade, uma delicada dose de pureza em tudo isto. Assim como é inegável a frescura que as suas canções libertam no ar. Por isso termino quase como comecei. O que vem de tempos mais distantes, torna-se novo, por um qualquer efeito indizível. E eu, que nem sou muito dado aos prazeres digestivos da carne, posso afirmar-vos que adorei a refeição!