O regresso mais aguardado do ano deixa um sabor amargo. Ao mesmo tempo que criticam a sociedade de consumo, os Arcade Fire fazem o disco mais leve da sua carreira e, sobretudo, não conseguem manter o nível elevado ao longo do álbum.
O autocolante na capa do cd promete a oferta de um saco na compra de Everything Now, o ansiado disco que os Arcade Fire acabam de lançar. É um pormenor, mas que se torna relevante numa obra que tem como pano de fundo a sociedade de consumo, o ruído, as redes sociais, o exagero dos dias de hoje.
Um álbum novo da “maior banda do indie rock” seria sempre aguardado com muita expectativa. Este mais ainda. É o primeiro disco editado por uma major e sucede ao surpreendente Reflektor, o álbum do ano em 2013 para a redacção do Altamont e que marcou uma partida face ao template de rock épico dos primeiros discos em direcção a um rumo mais electrónico.
Num momento em que se discute, mais uma vez, o fim do rock – e o surgimento do quê, no seu lugar? – a banda canadiana está a ser apontada como uma espécie de barómetro de um movimento, a prova da sua morte ou da sua resiliência. Dando de barato a injustiça de colocar tanto peso num único grupo, Everything Now iria dar-nos as respostas. E dá, num disco onde toda a gente poderá ver o que quer ver. O fim ou o seu contrário.
Este é um disco definitivamente político. Depois de Funeral (2004) e Neon Bible (2007), com o seu ambiente épico e claustrofóbico, The Suburbs (2010) foi já uma evolução sonora e não só, um disco mais pessoal e menos épico que os anteriores, devendo mais a uma tradição rock do que ao indie inicial. A banda, essa, foi crescendo sempre, e tornando-se mais política. Se no curioso e ousado Reflektor essa veia estava sobretudo implícita, as coisas são agora diferentes. O mundo mudou, Trump está na Casa Branca – com tudo o que isso nos diz sobre a nossa sociedade – e os Arcade Fire amadureceram, tiveram filhos, deixaram de ter algo a provar. A tentação para uma Bonoficação (em honra do vocalista dos U2) era demasiado grande, e não foi possível resistir.
Para o lançamento de Everything Now, os Arcade Fire desenharam toda uma campanha de marketing de guerrilha. Uma operação com base no conceito do culto das celebridades, da mercantilização massificada, da artificialidade das redes e das relações sociais, da alienação pessoal, enfim, com base na doença do homem pós-moderno do século XXI. Isto envolveu inúmeros teasers, artigos falsos na internet (como um sobre o regime alimentar e de exercício físico da celebridade Win Butler), a criação simulada de um conglomerado industrial chamado Everything Now (a cultura como produto), enfim, houve de tudo um pouco.
E houve também a libertação sucessiva de singles do novo disco, numa aparente cedência ao actual modelo de consumo musical digerido através do Spotify e do Youtube. Mas já lá vamos.
Um dos problemas de Everything Now é uma insanável contradição. A banda que passou quase um ano a ironizar sobre a sociedade de consumo acabou por embarcar numa campanha destinada a chamar a atenção para o seu produto. Voltando ao início deste texto, a compra do CD garante a oferta de um saquinho de pano com o logotipo da banda, um tote bag, no baptismo hipster que quer tornar aceitável andar de malinha. A dificuldade da ironia é que há uma linha ténue entre a crítica ao que fingimos elogiar e o elogio do mesmo. Com a sua libertação de singles para agradar aos novos ouvintes das plataformas digitais, com a sua “falsa” mas verdadeira campanha de marketing, com os seus tote bags, os Arcade Fire levaram a ironia longe de mais, e transformaram-se no melhor exemplo daquilo que pretendiam criticar.
Depois há o mais importante, a música. Neste contexto mais intelectual, pelo qual peço desde já as minhas desculpas, há outra gritante contradição entre um discurso crítico nas palavras e a música que as carrega. Este é, sem dúvida, o disco mais leve e mais pop que os Arcade Fire deram ao mundo. Isto, por si, não tem absolutamente mal nenhum. Mas como digerir mensagens anti-consumo e de apelo ao regresso ao real ao som de canções feitas – as melhores neste disco – para um consumo rápido, um airplay descartável, uns milhões de vizualizações no Youtube?
Depois do indie-rock épico, do rock pessoal, da electrónica estilo DFA, a evolução dos Arcade Fire levou-os a fazer um disco pop. A produção ficou a cargo dos próprios e de dois nomes interessantes: Thomas Bangalter, metade dos Daft Punk, e Steve Mackey, antigo baixista dos sempre excelentes Pulp.
O problema não está na leveza e na pop. O problema é que o disco não consegue ser minimamente coerente e manter um nível médio elevado. Mais, depois da libertação muito antecipada de vários singles que acabariam por ficar no álbum, aquilo que poderia ser um efeito entusiasmante de descobrir esses fortíssimos temas pop sai claramente diluído. E, por já conhecermos várias canções, a análise ao disco enquanto entidade colectiva, enquanto álbum, torna-se difusa, dificultada pelo desequilíbrio entre músicas que já conhecíamos e das quais já nos fartámos (a estrondosa pérola pop que é “Everything Now” dificilmente será suportável dentro de um par de meses) e algumas que não estão ao nível que esperávamos.
É este um mau disco? Não temos essa opinião. É sobretudo um disco desequilibrado. Tem vários temas muito fortes: “Signs of Life”, com os seus ecos de Blondie e Abba; “Creature Confort”, com alguma da intensidade dos velhos tempos e encharcada em sintetizadores, anos oitenta e um baixo a lembrar Peter Hook; a pop alienígena de “Electric Blue”; ou o groove nocturno e cansado de “Put Your Money on Me”. Mas depois tem coisas mal acabadas, ideias de trabalho que não mereciam chegar a disco: “Infinite Content”, “Chemistry” ou “Peter Pan”, estas últimas uma aproximação ao reggae que não funciona de todo, pela falta de inspiração.
Everything Now é um objecto que vai necessariamente polarizar opiniões. Os puristas irão odiar, os popsters irão adorar e consumir o disco nas fatias que lhes interessam. Os Arcade Fire fizeram, novamente, um álbum diferente daquilo que haviam feito no passado, mas fizeram provavelmente o disco mais fraco da sua extraordinária carreira. Claro que um disco fraco de Arcade Fire é melhor do que muita da coisa que por aí anda hoje, mas também é verdade que um currículo quase impecável é também, sempre, uma responsabilidade à luz da qual todos os trabalhos são avaliados.
Fica a questão: será possível, em 2017, fazer um disco político e com uma mensagem profunda assente numa matriz de pop mais ou menos plástica dos anos 80? Não temos resposta para isto, mas parece difícil. Basta pensar num dos grandes álbuns deste ano, Is This The Life We Really Want, de Roger Waters, um disco político com peso e gravitas, ou em OK Computer, em que muitos destes temas foram abordados com uma complexidade sonora correspondente à profundidade da mensagem, para percebermos que não é fácil.
Depois de, de certa forma, se terem inadvertidamente transformado naquilo que pretendiam satirizar, qual o caminho para os Arcade Fire? Gostaríamos que se libertassem de toda a tralha, toda a parafernália, tudo o que girou à volta do lançamento deste disco, que deixassem de tentar ser cada vez mais inteligentes. Que se concentrassem em fazer música boa e profunda, que voltassem a ser pessoais e não sucumbissem à tentação e à presunção de serem universais. Que a música voltasse a estar no centro, como nos velhos tempos em que nos apaixonaram.
Qual será o próximo passo, o caminho? Não sabemos, mas estaremos cá para os acompanhar. Uma coisa é certa, a viagem não será aborrecida.