Pedro Lucas é o criador de O Experimentar Na M’Incomoda, finalista dos Prémios Megafone em 2010 e talvez o projecto mais interessante da música nacional deste século. Pedro, um açoriano que vive em Copenhaga, esgravatou a tradição folclórica da sua terra e combinou-a com a modernidade urbana de uma capital europeia. Pelo meio, entre as gentes que foi conhecendo, agarrou um cantor (Carlos Medeiros, que não conseguimos nós agarrar para esta entrevista) com quem lança em breve um novo álbum. A estreia ao vivo, com banda completa, acontece no sábado (25/10) no Jameson Urban Routes, no Musicbox. Entre cavaleiros e marujos, entre os nossos dias e o século XVI, ficámos a conhecer melhor a viagem de Medeiros/Lucas.
ALTAMONT: Antes deste projecto, o Carlos Medeiros já tinha trabalhado contigo, no Experimentar Na M’Incomoda. De onde vem essa ligação?
PEDRO LUCAS: Sim , aliás o Experimentar Na M’incomoda – o nome vem do disco dele (O Cantar Na M’Incomoda) e no primeiro disco do Experimentar, a ideia original era revisitar o disco do Carlos, na íntegra. Depois fui adicionando coisas, outras foram saindo, mas a ideia ficou lá. E o Carlos cantou, além das coisas que usei do disco dele, cantou numa canção do primeiro disco e em 2 ou 3 do segundo. Eu descobri o Carlos assim por acaso, num concerto nos Açores, assim naquelas coisas que um gajo decide à última hora, não me apetecia sair de casa, mas ok vamos lá. Era um concerto de aniversário de um músico de lá, em que havia muitos convidados. E estava lá o Carlos Medeiros, eu não fazia a mínima ideia de quem é que fosse, e de repente ele começa a cantar e caiu-me tudo. E fui perguntar aos meus amigos todos, que me explicaram que dentro da música tradicional tinha um disco de culto (O Cantar….). Depois lá me arranjaram uma cópia do disco e durante duas semanas só ouvi aquilo até que um dia decidi fazer uma remistura, e foi assim que nasceu o Experimentar. Depois eu estava ligado a uma associação cultural nos Açores e arranjei maneira de convidar o Carlos para ir lá fazer um concerto, arranjei uma desculpa para o conhecer. Na altura mostrei-lhe já uns “remixes” que eu andava a fazer com as músicas dele, e a cena gira é que ele veio ao Faial para fazer esse concerto, e diz-me que nunca na vida tocou aquele disco, e fez uma coisa improvisada, com 4 músicos para o primeiro concerto d’O Cantar Na M’Incomoda.
Tu lançaste dois discos, com O Experimentar Na M’Incomoda, em 2010 e 2012. Desde então tens estado a trabalhar com o Carlos Medeiros. O que é que aí vem?
É uma continuação, uma continuação bastante orgânica d’O Experimentar, mas é diferente, estamos a trabalhar com temas originais. Há muita inspiração de música tradicional não só dos Açores. Há um conceito que já vem do Carlos, há uma ideia que o Carlos me tinha falado, na altura entre o meu primeiro e o segundo disco, eu estava em São Miguel com ele e ele falou-me que um dia queria fazer um disco assim uma coisa meio quixotesca, meio louca.. E eu quando lancei o segundo disco, num concerto em São Miguel, disse-lhe que era altura de arrancarmos para outro disco. Eu queria produzir um disco dele, basicamente. E ele disse “epá tudo bem, mas fazemos a coisa a meias, não é um disco meu”. E assim foi, um ano depois fui para Ponta Delgada, entretanto a ideia quixotesca dele foi-se… continua lá na base e na origem, mas o projecto desenvolveu-se um bocadinho. Mas há canções que já vêm desde…coisas que ele toca há anos, e depois há outra metade que são coisas que nós criámos agora. Os textos são todos de outros poetas. Há uma ideia… é um Quixote marinheiro, não é um Quixote cavaleiro, então todos os textos andam muito à volta do mar e de fazer a viagem. Há muito mar neste disco, muita “marujada”. Os poetas são todos mais ou menos ligados aos Açores, depois na música há uma ideia um bocado Ibérica no disco. Diria que há um epicentro geográfico na metade Sul da Península Ibérica, em termos de influências sonoras, desde a Andaluzia ao Fado, ao Zeca Afonso, depois estende à música tradicional dos Açores e depois as coisas mais do Norte de África, mais magrebinas…
Há uma inspiração quase moura?
Sim, muito moura, é exactamente essa a palavra, que também está muito ligada à Ibéria, não é? Todos os textos são de outros autores, nós escrevemos a música para os textos deles. Algumas músicas já estavam escritas, há um tema que o Carlos já toca desde os anos 80. E são coisas que ele foi fazendo e depois, a primeira parte do processo foi eu chegar a casa dele, instalei-me lá, pus um gravador em cima da mesa e “vá, mostra lá o que é que tens”. E ele tocou lá as músicas, umas 15 canções ou ideias.. depois fomos escolhendo as melhores, ficámos com um grupo de 6, com um conceito, uma coisa que ligava. Depois fomos à procura de novos textos, de livros que ele tinha em casa, fomos para a biblioteca ver coisas de poesia açoriana, à procura de um Quixote Marinheiro.
Com o Experimentar, a sensação que eu tenho é de estar perante uma quase enciclopédia, com esse escavar na tradição musical. Agora, pelo que me dizes, é também uma quase enciclopédia literária…
Sim, mas é um bocado arbitrário, não é académico de todo. Mas isto é uma coisa que já se faz há muito tempo, o Zeca Afonso inspirava-se muitíssimo na tradição, talvez não na dos Açores, mas… Talvez nos Açores não há assim ninguém, modernamente a fazer isso… mas havia, nos anos 90, um grupo grande de que faziam parte o Carlos, o Zeca Medeiros, em que eles tocavam muitos temas de música tradicional dos Açores, coisas mais antigas, mais canónicas digamos assim, aqueles temas que fazem parte do cancioneiro, toda a gente conhece, todos os grupos de folclore tocam, etc. Depois o Carlos é que vem fazer um disco em que..o Carlos tem essa.. quanto a mim, académica é uma palavra muito forte, mas já vai à procura de recolhas, de coisas que não fazem parte desse tal cânone e que a mim de certa forma me interessou um bocado mais e fui buscar coisas um bocado diferentes (principalmente no 2º disco do Experimentar). Também há um anacronismo, que tem a ver com o processo deste disco, que é andar à procura de um certo tribalismo açoriano.. não é tribalismo, é etnicismo, qualquer coisa assim, coisas muito ritualescas, que eu gosto.
Há então aí mais uma vertente, que é quase antropológica…
Sim, muito rebuscada, mas sim. Há muitas ideias, para mim próprio é um bocado difícil analisar o que é que passa pela cabeça…uma coisa puxa a outra.. Isto nasce com a ideia do Carlos, de querer fazer um disco quixotesco, com uma cena bastante louca, que se foi perdendo, o marinheiro acabou por bater o Quixote, a melancolia marinheiresca digamos assim, no fim há ali um Moby Dick vs D. Quixote.
Para os primeiros discos houve muito trabalho de pesquisa da tradição açoriana, neste não tanto, em termos sonoros é mais alargado…
Sim e não. A parte dos textos, o Carlos é a pessoa mais indicada para, porque a minha parte é mais a produção mesmo. Há mais influências em termos de música tradicional, vai ser mais contido em termos de música moderna (se bem que há). Mas vai ser uma coisa bastante mais minimal. O Experimentar tinha muitas camadas, e eu desde o início quis fazer uma coisa um bocado a pensar nesse tal etnicismo ou tribalismo açoriano, então há muita percussão, muitos tambores, uns tímbalos, muito minimalismo e tudo à volta..algumas texturas electrónicas, mas um disco muito à volta da voz do Carlos. Depois há 2 ou 3 temas em que já ligo mais ao Experimentar, já há mais camadas de som, mas em geral é um disco muito à volta da voz do Carlos.
Então instrumentalmente é mais orgânico.
É muito mais orgânico. Pela primeira vez nós estamos em estúdio a gravar o disco todo, com músicos – o Ian Carlo [Mendoza], percussionista de Tigrala, gravou as percussões todas, as baterias e tal. Nós no sábado fizemos uma coisa à antiga, que eu tinha vontade de fazer – gravámos 3 temas (o disco vai ter 10 temas) sem overdubs. Porque eram temas que tinham uma respiração do caraças, aquilo tinha de ser gravado tudo ao mesmo tempo. Talvez as vozes vamos ter de regravar, mas o instrumental foi tudo à primeira. É mesmo uma ideia poética, já ninguém faz isto, principalmente eu, o meu processo antigo de fazer discos era uma coisa muito individual, com o laptop, headphones e café. Mas sim, é uma coisa muito mais orgânica. Mas quando vai à electrónica, é uma coisa muito mais electrónica.
Neste disco, o Carlos assegura a parte literária e das vozes e tu és o maestro, coordenas a parte musical…
Sim. A segunda metade do disco foi composta, as melodias, as músicas, foram compostas em conjunto, os textos também fomos à procura em conjunto, um ao lado do outro a ler coisas, a mostrar coisas, e ele é a última pessoa a dizer sim ou não ao texto, é ele que canta. Depois a melodia dos textos foi à antiga, os dois à volta duma mesa, com violão, a olhar para aquilo, a cantar, até achar uma coisa que encaixe. Então o processo sai assim. Mas depois de ter essas gravações feitas, de voz e guitarra, as canções escritas, eu meto aquilo para o computador e aí já é o meu processo individual de produtor, a produção é minha.
E que mais instrumentos é que usam neste disco?
Muitas percussões, uma bateria…eu proibi a cena do 4 por 4, a bateria é muito mais a abusar de tambores, mais rirmos de jazz, muitos timbalões e congas. Isso foi tudo o Ian Carlo. Eu toco guitarra em todo o disco, o Carlos canta, depois há bastantes texturas electrónicas, dois temas gravei com um amigo meu que trabalha em coisas electrónicas mais elaboradas, hi-fi. Há baixo eléctrico, baixos sintetizados. Uma das regras que o Carlos me deu foi que o piano, instrumento rei, era completamente proibido no disco (mas eu arranjei maneira de meter para lá uns sintetizadores). E há uma música que tem bandolim.
Sobre o conteúdo lírico, este disco aborda o tema da “viagem”, certo?
Sim. Aliás, nós estamos a gravar o disco no estúdio e há um problema qualquer de electricidade e estamos a funcionar a gerador. Parece que estamos a ligar a traineira. Então há todo um imaginário de mar à volta deste disco que é impressionante. Eu sou o piloto, o Carlos é o capitão. Mas é uma coisa muito de viagem. Se bem que a viagem oscila um bocado, entre um Sancho Pança, com a parte mais corriqueira, um Sancho Pança mais destemido, mais marinheiro. Das coisas mais terra a terra até às coisas mais poéticas, uma viagem existencial. Nós fomos buscar dois textos deu um tipo dos Açores, Armando Côrtes-Rodrigues, que foi o único poeta açoriano que fez parte do Orpheu (se não estou em erro), e esse era um bocado mais existencial.
E em termos de datas para o disco?
Vai sair no próximo ano. Estamos a apontar para Fevereiro. Idealmente o disco ficaria pronto esta semana, mas acho que não. As gravações já estão quase, mas a mistura não fica acabada. Portanto ou eu volto a Lisboa para acabá-la, ou delego a tarefa ao técnico de som.
Com este disco, a que público querem chegar, ou a quem acham que isto vai chegar?
Ui… Eu não sei, eu queria…não sei. Bom, eu com os discos do Experimentar sempre insisti que aquilo era uma coisa criativa, mas uma coisa de canções, pop. Não é erudito nem é tradicional, portanto só pode ser popular, pelo menos na tripartição académica da coisa. Com este disco, eu não estou com ilusões que vai ser uma coisa pop, que as rádios vão pegar, que vai haver um single. Pá, é uma coisa mais específica, para um público mais específico, para pessoas que estejam mais interessadas em ouvir aquilo. Há um trabalho mais pesado, intelectual, pseudo-intelectual por trás disto tudo, mas depois quando se chega aos temas, são canções e o que interessa é que as pessoas se identifiquem imediatamente com aquilo, não quero que as pessoas saibam o processo todo e que aquilo tem textos assim ou assado, o que me interessa é que seja imediato. E se conseguir isso, fixe. Agora estar a ir pelo target…sei lá, podem se todos e pode não ser nenhum. É como o primeiro disco do Experimentar, uma das coisas que mais gostei nesse disco foi que houve muitas crianças que gostaram. E quando uma criança gosta é… não há filtros ali, é imediato. Acho que há 2 ou 3 temas que vão ter essa capacidade, o resto do disco é demasiado negro para as crianças. Este disco tem menos barulhinhos e menos mariquices que havia nos discos do Experimentar. É um bocado mais imediato e menos complicadinho, mais minimal também, mas há 2 ou 3 temas que são muito mais expressionistas, em que estou a malhar na guitarra à força.
E a vertente ao vivo? A estreia em palco é este sábado no Musicbox…
Nós vamos ser 4 pessoas: eu, o Carlos o Ian Carlo e o Pedro Gaspar que era do núcleo do Experimentar e que vai fazer sobretudo máquinas e baixos, a maioria dos baixos vão ser electrónico, eu vou fazer guitarras, o Carlos vai cantar e o Ian vai fazer percussões. É a primeira apresentação ao vivo, com a banda toda. Este formato vai ser o que vai funcionar mais e é o que tem tudo, a electrónica, a bateria, a voz do Carlos. E eu tive algumas preocupações mais logísticas ao fazer este disco (depois de me ter queimado um bocado no Experimentar, com 5 ou 6 pessoas, cada uma na sua ilha, não conseguíamos ensaiar, nem juntar os instrumentos). Agora pensei nisso em termos do processo, da maneira como construía as canções. Em termos de electrónica há muito menos playbacks, aparece electrónica, mas tocada, só um ou dois temas é que precisam de mais camadas, mas isso é cozinhado ao vivo, é tudo uma coisa mais expressiva.
Portanto ao vivo não perde muito do disco?
Não. A minha abordagem agora foi diferente – um disco é uma coisa o concerto é outra. Eu em disco opto sempre pela contenção, acho que tudo o que são trejeitos que funcionam bem ao vivo, em disco isso cansa, precisa de ser mais limado, muito mais contido, porque é uma coisa que se vai ouvir mais vezes. Tem de ficar uma coisa, sem perder a alma, mas mais sóbria. Depois ao vivo um gajo “abrutalha”, curte um bocado mais, tem mais força, está-se ali a dar alguma coisa para alguém.
belo serviço público.