Com “Laranja Mecânica”, estamos perante um raríssimo e valiosíssimo exemplo de uma obra que conjuga três vertentes extraordinárias: o livro, o filme e a música.
O livro, publicado em 1962, é a obra-prima do britânico Anthony Burgess, que consta necessariamente de qualquer lista relevante dos melhores e mais influentes romances do século XX (e não só). Narra a história de um rapaz, Alex, e o seu grupo de hooligans amigos que, numa Inglaterra futurista (sem que se saiba alguma vez a data) se dedicam a praticar a ultraviolência. Depois de ir longe demais, Alex é preso e torna-se sujeito de uma experiência, o “método Ludovico”, através da qual o Estado pretende demonstrar ser possível reformar os delinquentes. O método consiste, muito simplesmente, em obrigar o sujeito a ver horas intermináveis de filmes atrozes, como imagens do Holocausto, violações, mortes extremas, de forma a dar ao corpo e ao cérebro uma overdose de violência que estes rejeitarão para sempre.
Se bem que o livro já tivesse alguma fama, era e ainda é uma leitura relativamente difícil (ainda que recompensadora), pelo que o fenómeno só chegou ao mainstream quando o genial Stanley Kubrick concretizou, em 1971, um desejo de muitos anos: levar esta história, este ensaio acerca da violência, ao grande ecrâ.
Sobre o filme creio não ser necessário alongar-me. Com a premissa-base da história, é justo dizer que o filme levou tudo ainda mais longe, deixando imagens e momentos icónicos para sempre (quem não conhece o poster, por exemplo?). Tal foi a controvérsia, que o filme foi retirado das salas britânicas em 1972, por iniciativa do próprio Kubrick. A sua família recebeu inúmeras ameaças e a imprensa acusava o filme de estar a servir de inspiração para uma série de violações e espancamentos que assustava o país. “Laranja Mecânica” só voltou a ser exibido no Reino Unido já depois da morte do realizador, em 1999.
As razões para esta obra ser de tal forma marcante estão na história fabulosa de Burgess; nas magníficas interpretações de um elenco liderado por um jovem Malcolm McDowell, tão fascinante que passou todo o resto da sua carreira a tentar livrar-se do papel de Alex; de uns cenários maravilhosos (aquelas mobílias, meu deus!) retratando um futuro frio e estilizado; de uma realização absurdamente boa do genial Kubrick; e, que é o que nos interessa aqui, uma banda-sonora que nunca, mas nunca, foi tão adequada ao filme.
O responsável principal pela música é Walter Carlos, um pianista clássico que, nos anos 60, descobriu uma forma rudimentar do sintetizador Moog. A sua ideia, que acabou por fazer a sua carreira, foi utilizar o Moog e outros sintetizadores primitivos, para interpretar trechos de música clássica. Como é óbvio, em relação a peças clássicas tocadas por pequenas e grandes orquestras, o trabalho de Carlos era moroso: tocar no sintetizador as diversas partes relativas aos diversos instrumentos, em várias pistas, para depois juntar tudo. A estreia veio em 1968, com “Switched on Bach”. Tal como o nome indica, o disco é composto apenas por peças de Bach, tocadas em vários sintetizadores. Tal foi o impacto da obra que “Switched on Bach” foi um dos primeiros discos de música clássica a vender mais de 500 mil cópias nos EUA. E logo no meio da revolução hippie! Seguiram-se mais algumas obras deste estilo, e tal foi o suficiente para Kubrick ter tomado a decisão de trabalhar com Walter Carlos e os seus sintetizadores mágicos.
O realizador sempre teve uma visão muito concreta da importância da música e do som em geral na sua obra. Do livro, vinha uma pista essencial: a personagem central, o delinquente Alex, era viciado em música clássica, sobretudo Beethoven, e sobretudo a 9ª Sinfonia. No entanto, a história era também passada num futuro distópico. Como relacionar as duas coisas? Obviamente, com Walter Carlos, o músico que sintetizava o clássico e o futuro da música electrónica.
Como método de trabalho, Kubrick escolheu peças clássicas para ilustrar as cenas que ia filmando. Carlos ia fazendo então a sua versão em sintetizador, sendo que, em muitos casos, Kubrick preferiu manter a versão original. É por isso que o filme vai alternando peças clássicas tocadas por orquestra clássica (Rossini, Beethoven), com outras peças clássicas tocadas por Carlos e com outras obras originais de Carlos. O tema que abre o filme e o disco, por exemplo, é um arranjo original de Carlos sobre uma peça de Henry Purcell. E “Timesteps”, original de Carlos, foi a primeira música gravada em disco a utilizar um Vocoder (olá Air, olá Daft Punk) como filtro de voz.
É um disco estranho mas não difícil. À segunda audição, entranha-se e, no meu caso, tornou-se efectivamente viciante. Creio que tal possa acontecer mesmo a quem não tem grande relação com o filme, mas quem a tem, como eu, torna tudo ainda mais especial. “Laranja Mecânica” e as outras obras clássico-futuristas de Walter Carlos são apontadas, hoje em dia, como uma referência incontornável por uma miríade de personalidades da música electrónica e não só. É uma daquelas obras em que, literalmente, uma arte (neste caso a música) dá um salto em frente, e abre todo um novo mundo para outros explorarem. Conseguir ser tão revolucionário e ainda assim ser tão agradável de escutar, é ainda mais difícil.
Três histórias curiosas para finalizar.
Carlos ficou muito desagradado por Kubrick, em várias partes do filme, ter optado por manter as músicas clássicas na versão original. De tal forma, que, logo em 1972, editou “Walter Carlos’ Clockwork Orange”, com vários excertos e músicas não utilizadas por Kubrick. A zanga com o realizador durou vários anos, até voltarem a colaborar em 1980, em “Shining”, mais uma obra-prima.
Kubrick queria usar elementos de “Atom Heart Mother”, dos Pink Floyd, e pediu autorização a Roger Waters. Este acedeu mas depois retirou-a, quando soube que Kubrick se preparava para cortar pedaços da música para coincidir com o tempo de certas cenas. Em sentido contrário, Waters pediu a Kubrick, anos mais tarde, para usar partes de “2001: Odisseia no Espaço”. Kubrick não se esquecera do episódio anterior, e recusou.
Walter Carlos é, hoje em dia, Wendy Carlos. Passou por um processo de mudança de sexo nos anos 70, financiado pelas receitas dos seus primeiros discos. “Switched on Bradenburgs”, editado em 1979, é o seu primeiro disco creditado a Wendy Carlos.
“Laranja Mecânica”, muito mais que um disco, um filme ou um livro. É um mundo. E o sintetizador amestrado de Walter/Wendy Carlos é uma fantástica porta de entrada para essa outra dimensão. Quem quer viajar?