“É quando a noite cai que o mundo se transforma. Durante as manhãs, as tardes, a vida corre sob o olhar da luz, que tudo vigia e controla. Protege, aconchega mas limita. É quando a noite cai, quando fica escuro, que deixamos a tutela do sol e refugiamo-nos na parte mais escura do que somos. Animalesca, selvagem, pulsante e irreverente. Quando a noite é noite, sente-se a beleza do que é negro.”
O Musicbox fez anos, era o terceiro dia de festa, e Lisboa ia ganhar mais uma razão para olhar para norte quando se procuram coisas únicas: Na meia-noite de sete de dezembro de dois mil e treze, os Ermo iam atuar.
Acabados de lançar o seu primeiro disco, Vem Por Aqui, os jovens António Costa e Bernardo Barbosa tinham para si o já icónico palco lisboeta. O público era tímido e estava expectante, a última vez destes rapazes em Lisboa já tinha sido há uns tempos, muita coisa tinha mudado, e quem lá estava esperava ser surpreendido. Em pouco tempo as luzes da sala acalmaram, o palco foi trespassado por holofotes brancos e estava tudo pronto. Ia começar.
Da escuridão surgem os dois bracarenses: António, o vocalista, com uma faixa preta pintada sobre os olhos, Bernardo, o maestro, refugiava-se sob o brilho do computador. Sem pedir licença, os batuques eletrónicos de “Eu vi o Sol” começam a ressoar na sala, e começamos a sentir que vamos estar perante algo especial. A voz milenar, mística de Costa não vacila (ao contrário do sistema de som) e, pujante, chama por nós. Vem por aqui. O público não responde, mas os gingares dançarinos falam por sí mesmo. Estávamos com eles.
O pesado da primeira música tornou-se mais leve assim que a doce batida de “Correspondência” começa a fazer-se ouvir. O primeiro single da banda soa bem: leve mas com substrato. As batidas vão subindo de tom e as teatralidades da dança do vocalista é infeciosa e deixamos a cabeça de lado por uns tempos, o coração é que vai puxando por nós. Mas como não há canduras que durem, depressa vemos o ritmo da sala mudar de novo e “Recreio”, o venenoso e sarcástico “Recreio” rebenta e as vergonhas começam a perder-se. Embaciados pela força do que se ouve braços, pernas, começam a soltar-se e a deixarem se levar.
Ganhamos folego com uma pequena pausa apenas para o perder de novo com “Primavera”, uma linda ode à memória feliz, ao amor, à família. “FMI” é o próximo som que se segue e, pela primeira vez, recebemos esta sigla com entusiasmo. Sente-se a revolta, a raiva quase, de quem se recusa a perder o pouco do futuro que não está hipotecado. Um sonoro e certeiro “todos para o ca****” personifica toda essa pressão libertada. E como a dúvida é o arauto da revolta, “Porquê” segue-se na set list.
Tanta era a energia que se sentia naquela sala, tanto era o ar quase gutural dos sentimentos que ali se libertavam sob a forma de escalas eletrónicas hipnotizantes e vozes que chegam do passado para nos assombrar que o sistema de som não aguentou e a maquina forçou o homem a abrandar.
Problemas resolvidos, voltamos a entrar neste carrossel visceral com um estrondo: o gráfico e espantoso “Súcubo” abre ainda mais a porta que dividia o palco da plateia e entramos num nível de intimidade incomparável. Sensualidade, libertação, frontalidade servem-se em fartos pratos que transbordam. Estávamos a chegar ao fim, infelizmente, mas ainda vinham coisas especiais. “Pangloss”, a última faixa do novo álbum queimou o resto do pavio que ainda havia por queimar. Tanta raiva, tanta vontade de mudar, ali, concentrada sobre nós, vinda do palco. Não queríamos que acabasse, mas algo nos acalmou. Pois mesmo neste infortúnio, caso inoportuno de desgraça, uma certeza se abate sobre as cabeças mais iluminadas, a certeza… a certeza de que tudo correrá bem.
E correu… depois de tanta catarse, tanta energia que naquela noite dançou com o António, connosco, fechamos o espetáculo com vigor. “Cedofeita” foi a batida cheia de genica que nos consolou a alma pela aquilo que se tinha acabado.
Assim foi o primeiro concerto da noite. Houve de tudo: morte, desgraça, amor, família e desespero. Ligado a nós, aos outros e ao nosso país. Mas de tudo isso que por ali serpenteou, uma coisa se destaca de todas as outras: Os Ermo vão dar muito, muito que falar. Que venham os Sensible Soccers.
(fotos: Francisco Fidalgo)