Como um dos representantes maiores do movimento tropicalista brasileiro, Gilberto Gil merece ser sujeito às mais variadas vénias, mesmo que faça, como fez já algumas vezes, álbuns menores e pouco dignos do nome que os assinou. Andou pelas franjas do reggae (Kaya N’Gan Daya, 2002), das festas de São João (Fé na Festa, 2010), isto apenas para me referir a devaneios do século presente. Mesmo que alguma crítica tenha sido elogiosa em relação aos discos citados, a minha opinião nunca foi essa, uma vez que prefiro o Gil mais interino, mais inventor de uma linguagem própria, perto das suas idiossincrasias originais, digamos assim. Também é verdade que uma das suas primeiras e maiores influências foi, por exemplo, Luiz Gonzaga, o grande Rei do Baião, e assim sendo, nunca o baiano renegou esse passado, sendo Fé na Festa um bom exemplo desse amor antigo, mas também permanente.
No entanto, quando Gilberto Gil e os seus conhecidos colegas tropicalistas anunciaram “a geleia geral brasileira”, pelo meio das guitarras elétricas estridentes e dos versos inflamados, houve, ao mesmo tempo, uma base que nunca se perdeu, nem ficou esquecida. Essa base chama-se Bossa Nova, e o nome mais em destaque desse modo de tocar e de cantar, e por isso sempre tido como mestre de todos os inauguradores da Tropicália, é João Gilberto. Caetano Veloso idolatra-o ainda hoje, e chegou mesmo a produzir um disco para o seu ídolo (João Voz e Violão, 2000), convencendo-o a gravar, pela enésima vez, temas como “Desafinado” e “Eu Vim da Bahia”, que curiosamente estão presentes no disco Gilbertos Samba, acabadinho de sair no nosso pais irmão. É sobre esse álbum que vos vou dar nota nas próximas linhas, avisando desde já que apenas fiz dele uma única audição. Se tivesse feito mais algumas, a proliferação de atributos espalhados pelo texto seria, estou certo disso, infinitamente mais considerável.
Gilberto Gil foi inteligente ao fugir do primitivismo do uso exclusivo do formato voz-e-violão. Imitar o mestre é coisa boa e não envergonha, mas tentar aproximar-se dele em demasia, talvez seja de evitar. Aliás, Gilberto Gil rodeou-se dos nomes mais jovens (mas já consagrados) da nova vaga de excelentes músicos que o Brasil não pára de produzir. Domenico Lancellotti, Pedro Sá, Rodrigo Amarante, Bem Gil e Moreno Veloso disseram sim à chamada, e em conjunto fizeram com que o passado se tornasse presente, envolto num ar moderno, mas bem comportado. Outra coisa não seria de esperar de tamanha constelação musical.
Em nenhuma das 12 composições do disco consta a autoria do homenageado, o que não deixa de ser interessante, como que a dizer que o que se pretende é capturar a essência do estilo e do método de aproximação à música que João Gilberto trouxe ao mundo. Em alguns momentos, e isso é bem audível para certos ouvidos mais conhecedores, a divisão cantada das palavras atinge o génio do fraseado de João, o que me comoveu e fez sorrir, ao mesmo tempo. Mas o dedilhar de Gil é outro, bem como as vocalizações não verbais, que também são suas, porque mais audíveis e presentes do que é costume ouvir-se no mestre de Juazeiro.
Depois de começar com “Aos Pés da Cruz” e de avançar para “Eu Sambo Mesmo”, chega o mundialmente conhecido “O Pato”, numa admirável interpretação. Segue-se “Tim Tim Por Tim Tim”, e surge a primeira boa surpresa do repertório com “Desde Que o Samba É Samba”, tema de Caetano Veloso, que já foi gravado várias vezes pelo próprio, e é canção de abertura do já referido disco que João Gilberto gravou em 2000. Belo momento, com direito a parte assobiada e tudo. Segue-se a jobiniana (sim, a palavra existe e consta dos melhores dicionários) “Desafinado”, mas “isso é muito natural” num disco com o propósito deste. A segunda surpresa vem logo a seguir, com “Milagre”. Essa antiga canção de Dorival Caymmi teve direito a interpretação tripartida por João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, no soberbo Brasil, de 1981. Agora, neste Gilbertos Samba, aparece cantada a uma só voz, mas sem perder ponta do seu enorme encanto. A instrumental “Um Abraço no João”, que evoca “Um Abraço no Bonfá” (de João Gilberto) antecede as eternas “Doralice” e “Você e Eu”, numa notável e deliciosa sequência. “Eu Vim da Bahia” fez-me lembrar do distante Gilberto Gil em Concerto (1986), uma vez que era essa a canção inicial do disco, embora aqui só não fecha o álbum pela razão que os versos seguintes deixam inferir, em derradeiro e expressivo jeito de homenagem, que acaba até por ser múltipla.
Canta-se assim, em “Gilbertos”: “Aparece a cada cem anos um / E a cada vinte e cinco um aprendiz / Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país / Foi Dorival Caymmi quem nos deu / A noção da canção como um liceu / A cada cem anos um verdadeiro mestre aparece entre nós / E entre nós alguns que o seguirão ampliando-lhe a voz e o violão / É assim que aparece mestre João e aprendizes professando-lhe a fé / Um Francisco, um Caetano, algum Roberto e a canção foi mais feliz / Aparece a cada cem anos um / E a cada vinte e cinco um aprendiz / Aparece a cada cem anos um”. É aqui que percebemos a verdade deste disco. Gilberto Gil não pretende imitar (à maneira dos artistas do século XVI) João Gilberto, mas mostrar o que em comum os dois Gilbertos têm. E é muito, como se sabe. Apesar das nítidas diferenças de percurso, a genialidade aproxima-os, unindo-os para todo o sempre. Na verdade, e como (quase) diz a canção, “acontece que são baianos”. E isso, na minha opinião, já diz muito.