Os anos sessenta tinham acabado de dar o seu último suspiro. Com o fim da década mais incrível da História, tanto nível cultural como social, as mudanças começaram a surgir em ritmos cada vez mais frenéticos. A ideia de paz e amor, que começou em meados da década e teve o seu auge em 1969 com o festival de Woodstock, passando pelo infame Verão do Amor, dois anos antes, em plena São Francisco, começava a dar espaço a um lugar mais sombrio, mais negro, mais agressivo, mais estranho. O fim, em modo figurativo, já tinha sido dado no final da década, no festival Altamont, com os Stones no olho do furacão. A partir desse momento, a inocência tinha ido dar uma volta e nunca mais apareceu…
Ao aproximarmo-nos do fim da década, a música começou a seguir outro caminho. Começaram a aparecer os grandes guitarristas, os grandes bateristas e, claro está, os grandes baixistas. Jimi Hendrix tinha mandado a sapatada na porta e nem precisou de nenhum Martim Moniz para que esta permanecesse aberta. Os Cream de Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker vieram logo atrás. The Who, Led Zeppelin, The Free, Black Sabbath não quiseram faltar à festa, e deram o ar da sua graça, sendo que ainda por aí viriam outros…
No fim de 1970, David Bowie estava numa encruzilhada. O seu disco de estreia, de 1967, tinha sido um desastre. A qualquer nível, especialmente comercial, o que lhe valeu ter ficado sem contrato com a editora. Dois anos volvidos e alguma experimentação pelo meio, o seu novo disco, novamente homónimo (mais tarde lançado com outros nomes para facilitar a identificação por parte do ouvinte) trouxe-lhe alguma da fama que o inglês sempre almejou. “Space Oddity” deu-lhe mais espaço de manobra e tempo de antena para poder decidir o seu rumo. Mas, aquele que viria a ser conhecido, e bem, como Camaleão, ainda não se tinha encontrado totalmente (será que alguma vez o fez?). O seu som, ainda algo folk, estava prestes a tornar-se “obsoleto”, um nicho para os puristas e algo precisava de ser feito. A resposta veio através de dois novos elementos que entraram na “banda” de Bowie: Mick Ronson e Woody Woodmansey.
Nunca será por demais elogiar a presença do novo, à altura, guitarrista Mick Ronson, homem responsável pela transformação do som mais folky e psicadélico de Bowie numa parede de som rock de barba rija, que não envergonharia nenhuma das bandas acima citadas. Aliando a bateria do seu conhecido Woodmansey ao baixo de Tony Visconti, novamente produtor do disco, só faltava enquadrar a voz e as letras de Bowie nesta mistura explosiva.
E assim, 1970 viu nascer aquele que é visto para muitos como o primeiro disco “a sério” da carreira de David Bowie. Aquele que começa a revelar o verdadeiro Bowie dos anos vindouros. The Man Who Sold The World é a escolha de Bowie na encruzilhada da sua vida. O caminho divergiria por diversas vezes no futuro, mas nunca tão decisivamente como nesta ocasião.
Quem vê a capa de The Man Who Sold The World pela primeira vez [na versão inglesa, apenas lançada em 1971, mas que mais tarde se tornaria na imagem definitiva] pensará estar na posse de um qualquer disco que se aproximará mais de algo que pudesse ser ouvido por alguém como Oscar Wilde, pois encontramos Bowie num “man-dress”, muito século XIX, um original do estilista Michael Fish, que retrata o início da criação do ser misógino que mais tarde Bowie explorará com todo o vigor nos discos vindouros.
No entanto, no interior de The Man Who Sold The World só encontraremos rock, praticamente. E nas mais diversas formas. Desde o hard rock até ao sinfónico, passando pelo progressivo e pelo glam. A isso não é alheia a participação de Mick Ronson. Além de trazer trazido o baterista Woody Woodmansey, Ronson trouxe mais peso e volume ao som de Bowie, e fez o pré-camaleão ter uma banda de verdade. Uma banda que pudesse rivalizar com os grandes que se começavam a destacar naquele tempo.
Pela primeira vez, Bowie tinha uma banda completa. Quatro elementos que se tornavam em mais do que a soma das partes, deixando Bowie mais tranquilo para as suas letras. The Man Who Sold The World é um disco de banda, e não um disco de Bowie com músicos de estúdio, como outrora tinha sido e isso reflecte-se no resultado final do álbum. Um disco coeso que funciona como um todo sem nenhuma música, à época, que se destacasse acima das outras. No entanto, hoje em dia é impossível ouvir o disco sem se pensar no single que dá nome ao álbum.
O disco foi todo ensaiado onde a banda vivia. Uma mansão chamada Haddon Hall que, para quem a frequentava, tinha o ar de ser a mansão onde viveria o Conde Drácula. Foi aqui que Bowie, Visconti, Ronson e Woodmansey se tornaram íntimos e, entre jams e jams, construíram aquele que seria o grande começo da carreira de Bowie. Nestas sessões, Bowie andava meio alheado, perdido de amores com a sua mais recente conquista (Angie), estando, por diversas vezes, ausente das sessões. Os restantes membros continuavam a ensaiar melodias e trechos de músicas, até que Bowie surgisse com uma ideia nova ou a misturasse em alguma já existente. Terá sido exactamente este alheamento de Bowie que trouxe um novo paradigma ao seu som. Uma espécie de líder ausente, que quando aparecia detonava tudo à sua volta.
O disco abre com “Width of a Circle” que, como já tem sido referido, afasta Bowie do caminho folk e mete-o rapidamente nos circuitos hard rock e progressivo. Uma música com mais de oito minutos que começa de modo frenético e acaba ao bom estilo dos Pink Floyd (“Saucerful of Secrets”) que estavam, também eles, a mutar-se para o progressivo. Daí, passando para feérica “All The Madmen”, é apenas um saltinho. Continuamos no mundo do psicadélico/progressivo, espécie de homenagem ao mundo de Syd Barrett e ao futuro dos Pink Floyd sem ele. A letra não podia ser mais apropriada.
Entre momentos mais pesados (“Black Country Rock”, “Running Gun Blues”, “She Shook Me Cold” ou “The Supermen) e os mais assombrosos (“After All” e, claro está, “The Man Who Sold The World”), o disco parece falar de vários temas que afligiam a vida de Bowie e que sempre foram a sua marca. Alienação e desencanto, a ideia de que o mainstream pisa todos que não se enquadram nele. E fá-lo desaguando em lugares escuros, paranóicos, referindo doenças mentais, guerras e opressões religiosas. Esses eram temas que começavam a afligir não só Bowie, mas toda a sua geração, à medida que os anos setenta começavam a raiar.
Bowie continua neste disco a escrever a sua participação na história da música e a serpentear-se de estilo em estilo, de pele em pele, de cor em cor. The Man Who Sold The World é apenas mais uma encarnação do extraterrestre que viveu entre nós, mostrando-nos como podemos estar sempre na crista da onda, independentemente da idade que vamos tendo.
Apesar das divergências a propósito do real começo da carreira de Bowie, The Man Who Sold The World é o primeiro tomo daquilo que viria a ser Ziggy Stardust. Ainda com réstias do rock psicadélico, Bowie, em conjunto com o triunvirato Visconti, Ronson e Woodmansey, acelera o passo e dá uma cacetada nos ouvidos dos ouvintes. Hard rock, heavy metal, rock progressivo e sinfónico e, claro está, o início do glam que muito começava a agradar a Bowie e ao seu grande amigo Marc Bolan, líder dos T. Rex. Daqui até ao estrelato era só uma questão de tempo e de uma nova mutação…
Infectado pelo “New York Dools”!!!