O regresso de D’Angelo aos discos é uma das grandes notícias dos últimos meses – e, se o disco já não é tão fresco quanto isso (saiu a meio de Dezembro de 2014, ao passo que ultrapassámos já as primeiras semanas de 2015), é inevitável, mesmo que tardiamente, falar dele.
A um imaginário musical construído com Brown Sugar (1995) mas sobretudo com o fantástico Voodoo (2000) seguiu-se uma pausa de catorze anos – intercalada com um acidente quase fatal (logo no ano em que Voodoo foi lançado) e uma detenção policial por sugestões menos próprias a uma agente de autoridade. Essa pausa foi quebrada agora com Black Messiah (termo que D’Angelo tenta associar a um imaginário colectivo e social, por mais que pareça condizer na perfeição com o misticismo envolto no seu regresso aos discos, que honra aqui sem mácula) – um título reminescente de Black Moses de Isaac Hayes, talvez.
Black Messiah tem sido amplamente aclamado, e creio que o merece inteiramente: é um álbum marcante e brilhante (adjectivo que não utilizo de ânimo leve), que vem mais uma vez «baralhar as cartas» da música americana. É, sobretudo, um disco que se atira de frente contra o simplismo e a banalidade, chamando a si um imaginário repleto de uma diversidade enorme de influências que vão sendo re-construídas, ao longo do disco, sempre com um cunho profundamente pessoal – D’Angeliano, se quisermos (porque a sua identidade tão demarcada já permite utilizar o termo, que poderíamos traduzir como «música que na lascividade encontra a subtileza e na festa, a seriedade»).
É difícil comentar os pontos altos, não só porque Black Messiah funciona perfeitamente como um todo (com as constantes ligeiras mudanças de direcção a não soarem nada forçadas) mas também porque seria bem mais fácil destacar as canções que não mantêm o altíssimo nível disco – uma, eventualmente duas -; o que, por razões lógicas, seria injusto fazer. A maioria é de um bom gosto inatacável: à impressionante «1000 deaths» (com momentos ora calmos e descontraídos, ora desviantes – do discurso religioso inicial à confusões de vozes que se misturam, culminando no ruidoso final) segue-se uma doce-quase-melosa (em bom) «The Charade». Encontra-se de seguida uma jazzística «Sugah Daddy» (que é também single) que antecede a delicadeza – aqui quase melancólica – de «Really Love» (fosse português e no início a voz que sussurra coresponderia ao belíssimo dedilhado com um portentoso fado, o que, felizmente, não é o caso, com D’Angelo a levar o tema novamente para a simplicidade amorosa).
Vai-se ainda nesta jornada, por exemplo, a «Back to the Future (part I)» (título como elegia à forma como Voodoo moldou a posteridade?) e à sujidade delicada de «Till It’s Done», da qual se parte para «Prayer» (que tem por lá uma guitarra surdamente estridente em modo blues) e para «The Door» (novamente com a belíssima subtileza instrumental da guitarra e com melódicos assobios).
«Another Life» fecha o disco em grande nível, numa espécie de bonito embalo baladeiro que antecede um sono profundo – e que funciona aqui como o silêncio e a sentido de fim que se instaura após a audição de um disco imaculado.
Quer nos momentos mais lascivos e festivos quer nos momentos mais relaxantes e baladeiros, há uma subtileza e um bom gosto inatacável nos arranjos (interpretados com mestria, entre guitarras, baixo – honra a Pino Palladino -, bateria – o mesmo a James Gadson – e teclados), que tornam o diálogo entre os instrumentos sempre agradável, criando um caldeirão primorosamente cozinhado (e do qual é difícil sair) que vai do jazz ao blues, da soul à electrónica, dos beats de hip-hop (pense-se DJ Premier ou J Dilla) até a momentos desviantes que no limite podem ser associados ao psicadelismo.
Desenganem-se os que julgam D’Angelo pelo estilo, registo criminal, rudeza ou falta de sobriedade: Black Messiah marcará a segunda década do Século XXI como Voodoo marcou a primeira.