Isto que abre o precedente para o estrépito de Loveless, este Isn’t Anything, não lhe é súbdito, um vassalo de utilidade dispensável. Tem como identitário o pendor para esta dicotomia muito shoegazy, a da dissonância inexorável com a impetuosidade emocional — em todo o intervalo entre o desespero social e a elegia do amor —, a da acidez do som e a doçura dreamy, o que provoca um dinamismo muito particular, uma flexibilidade e um estiramento sonoros, e é “Soft as Snow” que introduz a wall of sound do posterior quintessencial álbum do shoegaze. Ora, neste repuxar de ruído, na atmosfera lo-fi e por génese unmastered, My Bloody Valentine congregam um sensualismo andrógino com outro brutalismo melódico: num meandro libidinoso, em confronto com letras de suave vocalização e doce sibilância aliterada — “Soft as skin in leather / And I whisper ‘you'” —, o vigor da percussão, a volúpia da linha de baixo, os gemidos guitarreiros, os outros de Bilinda, tudo remetido à produção tão suja quanto necessária. O mérito da faixa é a distorção da distorção em linguagem rock-ish, uma acessibilização do abstracto (que seria a norma em m b v), o arreigar do desalinho noisy num fundamento concreto. Não só é subversiva pelo complô teórico que inicia, alegadamente o shoegaze, como também pelo rebento de uma nova linguagem sonora, num esforço performativo de carregar o temperamento no barulho — em formato inteligível, longe de transcendentalismos. E quando tudo é ruído e se o percebe, nada é ruído. E o ruído dança. E que maravilha é ouvi-lo dançar, caramba.
Soft as Snow (But Warm Inside) – My Bloody Valentine
Diogo Montenegro
Diogo de nome, Montenegro como apelido, intencionalmente confundido por «pontonegro» ou «montepreto» de forma recorrente, teve como maior arrependimento a sua inscrição no IST em 2013; assim, como recompensa, um miminho egoísta, gesticulou um manguito para o prezado instituto, e como maneira de viver engoliu cursos de revisão literária à boca rota e escreveu críticas e reportagens com maior parcimónia no ano lectivo transacto. É inferível portanto, que se passe a vulgaridade, que é um «ser de muitas contradições»: além do ódio a clichés, candidatou-se neste ano escolar a Artes e Humanidades na FLUL e dá explicações de matemática. (Curioso.) É ainda apologista do acordo ortográfico de 1945. Que o ecletismo não se gaste tão cedo. Nem a boa música.