Há algo acerca de Christopher Owens. Ainda não tem 35 anos, mas a sua vida dava mais que um filme. Nasceu em 1979, em Miami, no seio de uma família radicada no culto fundamentalista “Children of God”. Aos três anos de idade, vai com os pais para a Ásia, em peregrinação religiosa que os levou a viver em todo o lado e lado nenhum (não ajudava o facto de a seita encorajar sexo entre os membros, incluindo menores, ou incentivar as mulheres a engatarem homens “não crentes” para os converter através do sexo). Aos 10 anos, a sua errante congregação dirigiu-se a vários países da Europa de Leste até que, aos 16 anos, Owens se afastou de tudo, deixou a base da seita na Eslovénia e regressou aos EUA, para viver com a irmã, no Texas. Seguiram-se anos a servir à mesa e a trabalhar em supermercados. Nove anos de Texas depois, mudou-se para São Francisco, e foi na Califórnia que a sua vida mudou, mais uma vez. Aí agarrou-se à música, que havia aprendido na igreja, e acabou na banda de outro notório freak californiano: Ariel Pink. Nesse ambiente, conheceu Chet Jr White, músico e aspirante a produtor com um passado no hardcore. Foi dessa união que nasceram os Girls, a primeira vez que o mundo se apercebeu desse indivíduo chamado Christopher Owens.
Owens escreveu todas as músicas dos dois álbuns e meio (um óptimo EP entre os dois discos) dos Girls. Lixado, lixado deve ser ter como primeira música do primeiro disco um tema como “Lust for Life” (nada a ver), provavelmente a melhor música que ouvi nos últimos anos e que dificilmente Owens alguma vez superará em termos de energia e inocência.
Depois de dois excelentes discos (sobretudo “Album”, o primeiro), Owens acaba com a banda – na prática uma parceria que juntava as músicas de Owens com os arranjos e a produção de Chet Jr White. Foi há menos de um ano, e não é ainda clara a razão para o fim dos Girls. O próprio Owens dá duas, não necessariamente definitivas e provavelmente cumulativas. A primeira é que os Girls, sendo apenas dois, se tiveram de rodear de inúmeros outros membros – 27 ao longo de poucos anos! – para as digressões. Cada saída e substituição foram, para Owens, “uma horrível sensação de perda e abandono”. A segunda, explicada no singelo mas excelente site do próprio, o desejo de “trabalhar a um nível ainda mais pessoal”.
E, depois desta extensa introdução (peço-vos desculpa e paciência), chegamos finalmente a “Lysandre”, o primeiro disco a solo de Owens. E a primeira grande notícia é que soa a Girls. A voz de Owens, claramente, ele encontrou-a há muito tempo, e é a mesma desde o primeiro disco da sua antiga banda. Lysandre é o nome de uma rapariga francesa que o nómada Owens conheceu num festival na Riviera francesa (descobri que há mais do que uma Riviera), em 2009. Uma história de amor, uma relação, um disco onde tudo isso está a nu. Recomendo, aliás, no site oficial do artista, uma leitura guiada, canção a canção, feita pelo próprio. A excitação, o encontro, o esforço, a desilusão. Não há muitos artistas capazes de fazer isto assim, tão simples e tão belo. “Lysandre” é isso, um disco conceptual, se quisermos, sobre um tipo que, depois de anos a errar pela terra e a escrever músicas no seu quarto minúsculo, encontra o sucesso e começa a percorrer novamente o mundo, agora em cima do palco e a mostrar o que de mais íntimo tem, as suas canções.
É um disco mais unido que os dos Girls, disparando em menos direcções, mantendo um tema e sobretudo um tom do início ao fim. É um disco sobretudo acústico, tranquilo, e muito bonito. Um “indie darling” em convalescença amorosa, mas sem perder uma leveza que é o ponto forte de Owens. Se há defeito que possamos apontar a Owens – sobretudo nos trabalhos dos Girls – é essa suprema coerência de se manter fiel ao seu estilo, o que o leva a, por vezes, repetir nas músicas soluções que sentimos já terem sido exploradas em canções anteriores. Mas, lá está, se Owens nos atinge, mais vale que o repita com variações do que entreter-se em explorações estéreis. E mesmo esse defeito, em “Lysandre”, se nota menos.
O disco saiu no início deste ano, mas passou relativamente despercebido. E agora que Owens se prepara para uma digressão acústica – levando ao limite o que chama de forma ainda mais pessoal de trabalhar – é lançado “Lysandre – Acoustic”, as mesmas músicas apenas com guitarra e voz. Também é bom, mas recomendo a versão mais “cheia”. A oportunidade perfeita de matar saudades dos Girls ou de conhecer Christopher Owens, um tipo com uma história que, em vez de dar um filme, vai dando discos sentidos e de qualidade. (E é bonito, moças).